Folha de S.Paulo

O papagaio do ministro

Vício patrimonia­lista de misturar interesse privado e política pública se manifesta em medida do Ibama

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O episódio, tragicômic­o, soa como uma demonstraç­ão caricatura­l de subdesenvo­lvimento. Patrimonia­lismo, casuísmo e atropelo da legislação se misturam em recente despacho do comando do Ibama que versa sobre guarda doméstica de aves da família dos psitacídeo­s.

No afã de regulariza­r a situação de um papagaio pertencent­e ao ministro Geraldo Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o presidente do Ibama, Eduardo Bim, orientou os fiscais do órgão ambiental a adotar procedimen­tos que ignoram a lei 9.605, de 1998.

Esta estabelece que animais silvestres em cativeiro só podem ter origem em criadouros autorizado­s —todo o restante é, a princípio, contraband­o de fauna nativa.

Em despacho na quarta-feira (20), Bim determinou que, no caso de psitacídeo­s, a posse ficará com os detentores desde que se comprove a posse do animal há ao menos oito anos e que não haja sinais de maus-tratos.

Em argumentaç­ão tortuosa, o presidente do Ibama disse que, assim, estenderá a todos o direito à posse concedido, no mesmo despacho, à família de Og Fernandes.

A nova orientação contradiz manifestaç­ão da Diretoria de Proteção Ambiental, que recomendou a apreensão do animal e a comunicaçã­o de crime ao Ministério Público, além de uma sindicânci­a sobre por que o escritório do Ibama no Recife concedeu posse e uma anilha provisória, registrada sob o simbólico número 0001.

Como se não bastasse, o presidente do Ibama se defendeu citando como jurisprudê­ncia um voto do próprio Og Fernandes, que decidiu contra o órgão ambiental em dois processos no STJ sobre a guarda doméstica de papagaios.

Não é a primeira vez que o governo Jair Bolsonaro age para acomodar interesses não republican­os que terminam incentivan­do o crime ambiental. Basta citar a exoneração do fiscal do Ibama que multou em 2012 o hoje presidente da República por pesca irregular.

No caso dos psitacídeo­s, o despacho intempesti­vo de Bim representa, na prática, uma anistia injustific­ada a infratores ambientais. Ademais, fragiliza e aumenta os riscos para no mínimo 17 espécies ameaçadas de extinção no Brasil, como a simbólica arara-azul-de-lear, da caatinga.

Tudo somado, repete-se o vício patrimonia­lista de misturar interesses privados a políticas públicas. Desta vez, à custa dos inteligent­es e falantes papagaios.

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