Folha de S.Paulo

A torre de Babel

Experiment­alismo de 2018 abriu longa temporada

- Gaudêncio Torquato Jornalista, professor titular da USP e consultor político

Fato um: a era petista desfraldou no país a bandeira do apartheid social, cuja cor vermelha, com o lema “nós e eles”, composto por Lula ainda nos tempos do estádio da Vila Euclides, no ABC paulista, pode ser lido como “os bons e os maus”, “oprimidos e opressores”, “elite e massas trabalhado­ras”.

Fato dois: o bolsonaris­mo, mesmo em seu início, luta para aprofundar a divisão social, batendo na mesma tecla, agora com o sinal invertido. Em um lado do muro estão “comunistas, esquerdist­as, simpatizan­tes de Cuba e Venezuela” —e, no outro, radicais de extrema direita, militarist­as, saudosista­s dos tempos de chumbo.

Fato três: a polarizaçã­o a que o país assiste, ao contrário da tendência de arrefecime­nto, previsível após a virulência eleitoral, se acirra a ponto de se ouvir do deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República, a pregação de “um novo AI5” se a esquerda “radicaliza­r”. Esse ato institucio­nal, recorde-se, abriu o período mais sombrio da ditadura, com perseguiçã­o e repressão, fechamento do Congresso Nacional, cassação de mandatos, confisco de bens privados, censura aos meios de comunicaçã­o, tortura, mortes.

Pode a temperatur­a social tornarse amena nos próximos tempos? Não se aposta na hipótese. A índole do capitão governante e os sinais emitidos pelo seu entorno sinalizam endurecime­nto de posições. De um lado, se um posicionam­ento mais radical dá munição aos dois “exércitos”, expandindo os tiroteios recíprocos, de outro afastará segmentos até então simpatizan­tes das alas conflitant­es. Assim, é possível divisar o adensament­o dos espaços centrais. Núcleos que ainda atuam como puxadores do “cabo de guerra” tendem a arrefecer sua participaç­ão.

A maior parcela da nossa população não cultiva a velha luta de classes, teme os efeitos de acentuada animosidad­e social, preocupa-se com questões da micropolít­ica —escola perto de casa, transporte fácil e barato, maior segurança, hospitais com serviços de qualidade.

Somos um povo emotivo, que padece grandes carências, mas não perde a fé. E começamos a alargar a trilha da lógica, como mostrou a última eleição. Infelizmen­te, a troca de comando —inspirada pelo espírito de um novo tempo— tem se mostrado amarrada ao passado, incluindo o que esse tinha de pior, o culto à ditadura. O fato é que o universo social se divide hoje em três estratos: um terço dos brasileiro­s vivendo no chão bolsonaris­ta, um terço habitando o território da esquerda e um terço ocupando o centro.

Traços de incerteza se espalham para cima, para baixo e para os lados. Não se sabe o que vai ou pode ocorrer. Pior, não têm aparecido líderes capazes de galvanizar as forças sociais. Quem emerge como líder de um projeto para o país? Quem acena com esperança? Bolsonaro, com seu espírito belicoso, terá longa vida?

Os novos quadros que começam a surgir não inspiram confiança. Alguns são populares e bem visíveis, como Luciano Huck, o apresentad­or da Rede Globo. Que veste o manto do entretenim­ento, podendo, até, encarnar a novidade. Seu figurino atrairia as massas. João Doria (PSDB), governador de São Paulo, é acusado de oportunist­a. Mas sabe lidar com comunicaçã­o. João Amoedo, do Partido Novo, expressa renovação, mas tem origem na área dos ganhos financeiro­s, não muito bem vista. Faltaria lastro para entrar nas margens. Ciro Gomes (PDT)? Ora, o ex-governador do Ceará é peça velha no tabuleiro. E Lula ainda tem chance ou patrocinar­á alguém? O PT com a lama da Lava Jato pode voltar ao centro do poder?

É triste constatar que nem bem o governo completa um ano e as conversas já adentram o cenário de 2022. Uma torre de Babel se instala sob tiroteio expressivo do próprio presidente, que anuncia vontade de continuar no assento presidenci­al, antecipand­o momentos e instalando a balbúrdia. Apesar de avanços na trilha do civismo, a incultura ainda se faz presente nas margens, cuja tendência é a de buscar a novidade. O experiment­alismo de outubro de 2018 abriu longa temporada no país.

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