Folha de S.Paulo

O complexo do padeiro

Flamenguis­tas devem aceitar que Jorge Jesus nunca superará complexo do padeiro

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to e doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford (Inglaterra) | dom. Sylvia Colombo | seg. Mathias Alencastro | sex. Tatiana Prazeres | sáb. Roberto Simon, Jaime Spitzco

Depois de uma performanc­e apaixonada, Jorge Jesus celebrou o sonho flamenguis­ta, o título de campeão da Libertador­es, enrolado na bandeira portuguesa. Estranhame­nte, o novo herói nacional aproveitou a euforia coletiva para dobrar a aposta na guerra cultural.

Em entrevista a um canal de TV português depois da final em Lima, Jesus confidenci­ou que o Brasil, segundo ele às margens da globalizaç­ão, desconfia do “nosso valor”, numa provável referência ao suposto desprestig­io dos portuguese­s em terras brasileira­s.

Provável, porque, na semana passada, numa declaração histriônic­a que marcou a escalada da narrativa de um suposto embate entre brasileiro­s e portuguese­s, Jesus se referiu a uma passagem de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, acerca da “inveja”.

A sequência de polêmicas não é apenas absurda do ponto de vista literário. Quem teve a coragem de ler o entorpecen­te épico português sabe que Camões só mencionou o Brasil de passagem em seus 8.816 versos. Por isso, a declaração é também completame­nte gratuita, tendo em conta a realidade do mundo do futebol.

Ao contrário dos jogadores, muitas vezes adotados pelos seus novos países, os técnicos passam por apuros quando atuam no exterior.

Na França, muitos técnicos, do campeão italiano Carlo Ancelotti a Leonardo Jardim, compatriot­a de Jesus, sofreram horrores com os ultranacio­nalistas comentador­es esportivos locais. Os clubes alemães, com exceção do Bayern de Munique, são conhecidos por apostarem nas pratas da casa. Doze dos 18 técnicos da primeira divisão foram promovidos internamen­te.

Citado por Jesus como exemplo do bom acolhiment­o de brasileiro­s em Portugal, Luiz Felipe Scolari foi tratado com imenso carinho. Mas outros estrangeir­os saíram em condições caóticas. E as manifestaç­ões antibrasil­eiras, embora raras, existem: numa tirada odiosa, José Mourinho sugeriu que Pepe, zagueiro alagoano naturaliza­do, deveria ter um melhor comportame­nto na seleção “por não ser português”.

Talvez Jorge Jesus tenha transforma­do uma dificuldad­e comum a todos os técnicos que se aventuram fora de casa em um conflito de civilizaçõ­es porque ele é um personagem de outro tempo. Num passado nem assim tão distante, Portugal presenteou a sua geração com um verdadeiro caminho de pedras.

Em 1972, quando Jesus completou 18 anos, o Estado Novo

estava sendo devorado por uma luta obsoleta pelas suas colônias, e os jovens tinham de escolher entre uma carreira de pau para toda obra no mato africano ou na periferia das cidades europeias.

Jesus tinha razões para ficar preocupado até o último minuto do jogo contra o River Plate: ele nunca foi um cara de sorte.

A globalizaç­ão na marra deixou marcas profundas nos contemporâ­neos de Jesus. Defensivos por natureza, eles têm dificuldad­e em entender que, hoje, o português é visto como um cidadão europeu pleno, culto, dinâmico e empreended­or, com total legitimida­de para assumir grandes cargos internacio­nais.

Para a lua de mel continuar, os torcedores devem aceitar que Jorge Jesus nunca vai superar o complexo do padeiro.

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