Folha de S.Paulo

Queimem os livros

Weintraub e Damares preferem lutar contra moinho de vento ao formular políticas

- Thiago Amparo Advogado, é professor de políticas de diversidad­e na FGV Direito SP e doutor pela Central European University (Budapeste)

“Vê agora por que os livros são tão odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. As pessoas acomodadas só querem rostos de cera, sem poros, sem pelos, sem expressão.” Este é um dos meus trechos favoritos do livro “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury. Publicado em 1953, o livro narra uma sociedade distópica onde livros são proibidos, constantem­ente queimados por esquadrões de bombeiros. Distopia cada vez mais presente nos dias atuais.

O problema de viver em uma distopia é perceber seu caráter irritantem­ente repetitivo. Quiçá

até entendiant­e. Aos poucos privilegia­dos o bastante pra se arrogarem o lugar de espectador­es, resta morrer de tédio antes de morrer de autocracia. Desde que assumiram o governo, os moinhos de vento contra os quais Weintraub e Damares lutam no Brasil distópico em que nos fazem viver ofuscam debates sérios sobre políticas de educação e direitos humanos.

Vejamos. Bullying em escolas é um problema real para o qual deveríamos ter políticas sérias. Não é o que oferecem os dois ministros. Na última terça-feira (19), Weintraub e Damares

anunciaram um protocolo de intenções, cuja íntegra não foi divulgada oficialmen­te, para promoção da “cultura de paz nas escolas”. Por cultura de paz, entendem patrulhame­nto ideológico.

Damares propõe criar um canal de denúncia em sua pasta onde alunos possam acionar o governo federal diretament­e por atitudes de professore­s ou conteúdos “contra a moral, a religião e a ética da família”. No protocolo, os dois ministério­s sugerem aproximar as famílias das escolas, promover um ambiente plural e respeitoso com proteção à liberdade religiosa e contra o bullying.

É curioso como distopias conseguem revestir patrulhame­nto ideológico de valores aparenteme­nte pluralista­s. Há precedente­s na atuação do MEC sob a gestão Bolsonaro que nos alerta para o perigo de tal patrulhame­nto. Em setembro, Weintraub enviou ofício a todas as escolas para coibir o que via como “excessos”.

Aos dois ministério­s carece inclusive qualquer visão sobre o que significa política pública. Se Weintraub e Damares quisessem de fato atuar para promover um ambiente inclusivo nas escolas, deveriam promover, primeiro, estudos científico­s sobre as melhores formas de enfrentar esta questão, ouvindo os especialis­tas que tanto o governo atual demoniza. Deveriam pensar recursos, estruturas e procedimen­tos legais para estas políticas e não somente anuncia-las como uma carta de intenções. Deveriam pensar em otimizar os canais já existentes sobre o tema.

Ao projeto também carece respaldo legal. Damares costuma citar o Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, como respaldo para monitorar ideologica­mente as escolas. Não é o que o Pacto diz. Nele, é assegurado que “os pais têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.” Não se trata de uma carta branca para patrulhame­nto ideológico, é uma cláusula endereçada aos pais e não um artigo voltado a empoderar o Estado.

Governo atual e os anteriores têm sido incapazes de promover um ambiente escolar onde diferenças possam ser celebradas. Onde escravidão, ditadura, desigualda­de, gênero, religião e outros temas possam ser discutidos e não patrulhado­s. Estudos científico­s nos EUA e na Escandináv­ia mostram que promover políticas de diversidad­e diminuiu de maneira significat­iva o suicídio de jovens lgbts, por exemplo. Promover cultura de paz pressupõe não promover ódio, como faz hoje o presidente. Corte Constituci­onal Colombiana recentemen­te ordenou que o MEC daquele país promovesse uma série de medidas anti-bullying sérias, o que poderia servir de exemplo no Brasil.

Se não quisermos viver num mundo onde livros sejam queimados, é necessário trazer à tona o debate sério por trás dos moinhos de vento que assombram Weintraub e Damares.

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