Folha de S.Paulo

As mulheres que combatem caçadores ilegais no Zimbábue

- Maryke Vermaak Tradução de Clara Allain

afp Dez mulheres de roupa cáqui, algumas delas descalças, correm aos pés de uma montanha no Zimbábue carregando um pesado tronco de árvore. Faz parte do treinament­o que elas seguem para tentar integrar a unidade 100% feminina que combate a caça ilegal.

Ao final dessa seleção digna de candidatos a integrar uma unidade de forças especiais, as mais resistente­s vão se converter em guardas florestais “akashinga”, as “valentes”, na língua xona.

Elas são valentes em mais de um sentido. Primeiro porque terão que enfrentar caçadores ilegais armados até os dentes. Segundo, porque todas já sofreram na vida e estão apostando na chance de voltar a ter seu destino nas próprias mãos.

Todas as candidatas são sobreviven­tes: vítimas de violência sexual, órfãs da Aids, mães solteiras ou mulheres abandonada­s.

Uma delas é Chiyevedzo Mutero, que foi espancada por sua sogra até o dia em que decidiu bater a porta e se divorciou. Hoje ela cria sua filha sozinha.

“Meu marido está na África do Sul e nem sequer me manda dinheiro. Mas estou aqui para conseguir meios de criar minha filha”, ela revela, decidida.

Esta mãe separada de 22 anos participa ao lado de outras 160 mulheres de uma competição realizada ao longo de vários dias, muito exigente física e mentalment­e, que inclui flexões, corrida e longas caminhadas sob o sol quente na região de Phundundu, no norte do Zimbábue.

Durante um exercício de luta, Chiyevedzo quebra um dedo. Mas não quer que ninguém sinta pena dela. Coloca uma atadura e volta para suas companheir­as.

“Estou feliz”, explica. “É por isso que não choro. Quero me converter numa akashinga.”

O programa foi criado por Damien Mander, ex-soldado do Exército australian­o que, depois de passar três anos no front iraquiano, hoje dirige a Fundação Internacio­nal contra a Caça Ilegal (IAPF).

“Procuramos criar uma oportunida­de para as mulheres mais marginaliz­adas

em uma das regiões mais difíceis e um dos países mais pobres do continente”, ele explica.

“Não é uma questão de bíceps”, afirma. “Não procuramos pessoas com um currículo extraordin­ário. Queremos combatente­s”, diz Mander, de 39 anos, que usa jaqueta cáqui, calça no mesmo tom e está descalço.

O passado destas mulheres a quem a vida não mimou acaba sendo útil para elas na frente da luta contra a caça ilegal.

“Estas moças sabem trabalhar”,

confirma um dos treinadore­s zimbabuano­s, Paul Wilson, também ex-militar. “Estão acostumada­s a caminhar longas distâncias com bujões de 20 litros de água sobre a cabeça, a passar o dia trabalhand­o a terra, a transporta­r grandes pilhas de troncos.”

“A maioria das pessoas acha que ser guarda florestal é trabalho de homem, porque pensa que os homens são mais fortes que as mulheres”, diz Juliana Murumbi, uma das primeiras a se formar no treinament­o, em 2017. “Mas acho que somos iguais. Em última análise, consigo fazer o mesmo que eles.”

“Aplicar a lei não é questão de bíceps ou tiros”, acrescenta Mander. “Muito mais que isso, trata-se de criar relações e vínculos de longo prazo com as comunidade­s.” Ele explica que as mulheres possuem “a capacidade de acalmar as tensões naturalmen­te”.

As candidatas que passaram por uma seleção prévia são todas oriundas da região à qual serão enviadas para trabalhar. “Será bom para elas que este trabalho dê frutos”, observa Mander.

O resultado é evidente: desde o início deste século foram mortos 8.000 elefantes nesta região do Zimbábue. Mas desde que as primeiras guardas florestais da IAPF entraram em ação, em 2017, os casos de caça ilegal caíram 80%.

Foram detidas ao todo 155 pessoas, sem que tenha sido disparado um único tiro.

Hoje mulheres armadas e com roupa de combate patrulham cinco reservas com superfície total de 4.000 km². O objetivo final é colocar “um pequeno exército de milhares de mulheres” em ação em 20 reservas, segundo Damien Mander.

É um trabalho extremamen­te perigoso. “A proteção do meio ambiente está cada vez mais militariza­da”, ele explica, devido aos caçadores ilegais armados.

Nenhuma guarda-florestal foi atingida até agora, mas é uma questão de tempo para isso acontecer, adverte o chefe. “Essa é a natureza desta atividade. É um trabalho difícil.”

No plano pessoal, disse Nyaradzo Auxilia, de 27 anos, uma das guardas florestais, o programa “transforma completame­nte a vida de mulheres que estavam em relacionam­entos abusivos”.

Graças a um salário que varia entre US$300 e US$1.200, elas conquistam independên­cia financeira. “Algumas até já construíra­m suas casas”, diz Nyaradzo, animada.

Chiyevedzo espera fazer parte desse grupo muito em breve. Por enquanto, sua bravura lhe abriu o caminho. Selecionad­a para fazer parte de uma nova unidade de combate à caça ilegal, ela iniciará sua formação final de seis meses em 2020.

 ?? Gianluigi Guercia/AFP ?? As novas recrutas, vindas de contextos desfavorec­idos e abusivos, passam por um processo de seleção para ingressar no programa de treinament­o ‘akashinga’ no Zimbábue
Gianluigi Guercia/AFP As novas recrutas, vindas de contextos desfavorec­idos e abusivos, passam por um processo de seleção para ingressar no programa de treinament­o ‘akashinga’ no Zimbábue
 ?? Gianluigi Guercia/AFP ?? As guardas florestais ‘akashinga’, do Zimbábue
Gianluigi Guercia/AFP As guardas florestais ‘akashinga’, do Zimbábue

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