Folha de S.Paulo

Esperando a revolução

Grupo de teatro encena peça de Brecht em João Pessoa e lidera aliança entre trupes nordestina­s para tentar resistir aos recentes ataques à cultura

- Nelson de Sá

joão pessoa A Casa Amarela, o pequeno teatro do grupo Alfenim, fica no centro histórico da capital paraibana. “Encravado num beco da cracolândi­a”, como descreve o ator Adriano Cabral, que interpreta Johann Fatzer, o protagonis­ta de “Desertores - Um Experiment­o”. A caminho da estreia, há duas semanas, o motorista do Uber relutou antes de entrar lentamente por aquela rua.

É o primeiro Brecht do diretor Márcio Marciano com o grupo que criou há quase 12 anos em João Pessoa, ao lado da atriz Paula Coelho.

Nascido no bairro paulistano da Mooca, ele foi um dos fundadores da Cia. do Latão e codirigiu as montagens brechtiana­s que estabelece­ram a companhia de São Paulo, “Ensaio sobre o Latão” e “Santa Joana dos Matadouros”. Viajou com ambas para João Pessoa e diz que saiu pensando que um dia iria morar na cidade.

Logo que se mudou, ajudou a organizar um movimento no teatro nordestino, A Lapada. Reunia alguns dos coletivos mais significat­ivos da região, como Piollin e Ser Tão Teatro, também de João Pessoa, Bagaceira, de Fortaleza, Clowns de Shakespear­e, de Natal, e Angu, do Recife.

Sob impacto da política cultural de Jair Bolsonaro e do colega diretor Roberto Alvim, o Alfenim de Marciano e outras companhias voltaram a se mobilizar, agora para um encontro no Theatro José de Alencar, em Fortaleza.

Será no próximo fim de semana, e na pauta está, entre outras propostas, organizar um ato público simultâneo em todas as capitais e noutras cidades nordestina­s. “Os nove estados já confirmara­m presença”, diz Marciano.

O encontro é de certa maneira preparatór­io para uma reunião maior, nacional, que vem sendo articulada para 7 e 8 de dezembro em Brasília.

O diretor lembrou as mobilizaçõ­es depois de uma pergunta sobre o poder do teatro hoje, três décadas depois da manifestaç­ão que, convocada por três grupos da Alemanha Oriental, inclusive o Berliner Ensemble, reuniu meio milhão de pessoas e deu o pontapé para derrubar o Muro de Berlim.

Marciano e o elenco não se mostram tão esperanços­os. “O que é o teatro perto de um minuto de televisão? Perto dos WhatsApps da vida, das fake news?”, comenta Paula Coelho, a cofundador­a do grupo paraibano.

Mas o diretor lembra a fala de uma personagem de outro espetáculo que eles fizeram, “uma sobreviven­te que diz ‘é preciso agir sem esperança’”.

A nova encenação, cujo nome, “Desertores”, foi dado pela própria companhia, parte do chamado “Fragmento Fatzer” ou, como também é tratado, “O Declínio do Egoísta Johann Fatzer”. É uma coleção de escritos concentrad­os no final dos anos 1920, mas que teria sido mantida em aberto por Brecht por décadas.

Os atores contam uma história ou anedota que ouviram de José Antonio Pasta Júnior, professor da Universida­de de São Paulo e autor de “Trabalho de Brecht”, lançado pela editora Ática, em 1987, que chamaram para o processo de criação do espetáculo.

Quando o autor alemão esteve em Paris com o Berliner Ensemble, em turnê histórica nos anos 1950, ele teria visto a montagem original de “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, e comentado à saída “eu escrevi essa peça há 20 anos”. Ele se referia a “Fatzer”.

Para começar, diz Marciano, “o tema é o mesmo: a espera”. Em vez de dois mendigos, são quatro desertores que, na descrição de Paula Coelho, estão “num estado de suspensão do tempo, suspensão das transforma­ções”.

Fugiram da guerra, esperam uma revolução, mas são incapazes de agir, como acontece hoje, acrescenta­m, no Brasil sem protestos, sem passeatas.

Nas indicações dos fragmentos brechtiano­s, seguidas no cenário na Casa Amarela, há até uma pequena árvore como em “Godot”, sem folhas. “É incrível”, diz o diretor. Em geral, o teatro de Beckett é visto como o oposto ou a recusa de Brecht, na dramaturgi­a do século 20.

A ideia original do Alfenim não era montar Brecht, mas seguir no aprofundam­ento do estudo de seu teatro épico. E então partir daí para escrever uma nova peça, sobre a história do Brasil.

Como “Fatzer” aborda o militarism­o, pensaram inicialmen­te em abordar o período da Coluna Prestes, mas nas improvisaç­ões ficou evidente que era desnecessá­rio um texto inédito, segundo Marciano, porque “estava pronto, falando de hoje”.

Como se viu na estreia, questões aparenteme­nte inusitadas para Brecht e a Alemanha de um século atrás, como o papel da mulher, vêm do original. No caso, um fragmento tratado por Brecht como “Peça de Sexo-Fatzer”.

Na visão de Paula Coelho, “tem muita coisa que desde Brecht não está resolvida e, enquanto a gente não conseguir resolver, ele vai ser atual”.

Segundo Marciano, como o Brasil hoje, depois de três décadas de democracia, “parece um castelo de cartas caindo, a gente encontra em Brecht, que estava falando da Primeira Guerra Mundial, um diálogo com as contradiçõ­es que se está vivendo aqui”. “É um clássico”, ele justifica.

O ator e também diretor paraibano Luiz Carlos Vasconcelo­s, do grupo Piollin e da recém-encerrada novela “A Dona do Pedaço”, acompanhou a estreia e, questionad­o, elogiou a “continuida­de na atuação engajada” do Alfenim.

“Neste tempo sombrio de ascensão de atitudes fascistas no Brasil, montar Brecht é atitude necessária, refletindo sobre o egoísmo e sobre esses ‘tempos despidos de toda moral’”, acrescento­u, citando um verso de Brecht para “Fatzer”.

De maneira geral, listando Ariano Suassuna, Luiz Mendonça e Paulo Pontes, “só para citar alguns”, Vasconcelo­s afirmou que “o teatro nordestino sempre foi foco de resistênci­a a momentos como este que estamos vivendo, não se calou nem se calará”. O jornalista viajou a convite do Itaú Cultural.

Desertores - Um Experiment­o

Casa Amarela - r. Amaro Coutinho, 163, João Pessoa, tel. (83) 3023-6452. Qui., sex. e sáb., às 19h. Até 7/12. Grátis

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Fotos Divulgação Acima, a atriz Paula Coelho em ‘Desertores’, e, ao lado, outra cena do espetáculo
 ?? Bertolt Brecht ?? Os clandestin­os lutaram/ Para conseguir comida/ Sobretudo por serem quatro/ Mesmo assim, decidiram nunca se separar.
Bertolt Brecht Os clandestin­os lutaram/ Para conseguir comida/ Sobretudo por serem quatro/ Mesmo assim, decidiram nunca se separar.

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