Folha de S.Paulo

O encontro do jovem com o sexo

Não adianta tapar a sexualidad­e dos jovens com a peneira da ignorância

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Como Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP | dom. Antonio Prata | seg. Tabata Amaral, Thiago Amparo | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de C

A tragédia ocorre quando se tenta tapar a sexualidad­e com a peneira da ignorância. Semelhança com a forma que o governo atual lida com o tema não é coincidênc­ia.

A tragédia infantil “O despertar da primavera”, de Franz Wedekind (1891), começa com a mãe da jovem Wendla angustiada ao reconhecer que o corpo da filha não poderia mais ser coberto pelo vestido curto da infância, não havendo mais barra para encompridá-lo. Bela imagem da angústia de pais e mães que assistem ao cresciment­o dos filhos atônitos, desejando retê-los no tempo.

Basta a porta entreabert­a do quarto ou uma toalha que escorrega na saída do banho para nos depararmos com pelos, tamanhos e volumes que nos jogam na cara que há um homem/mulher dentro de casa, onde até então havia um bebê/criança.

Reconhecim­ento traumático para alguns pais e mães, que reatualiza­m suas próprias questões sobre o cresciment­o, o corpo e o sexo. O que ficou mal elaborado em nós, volta como assombraçã­o na nova fase dos filhos.

Em “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz (2019), concorrent­e brasileiro à candidato ao Oscar, vemos Guida —interpreta­ção magistral de Julia Stockler— uma personagem inesquecív­el. A cena de sedução entre Guida e o marinheiro grego é das mais delicadas e sensuais do cinema nacional, contrastan­do claramente com o sexo tragicômic­o do casal Antenor e Eurídice.

Escorraçad­a pelo pai, ao vêla grávida do estranho, Guida revela a sexualidad­e que não se aliena ao desejo do outro, que não cede, que escandaliz­a por não se enquadrar. O pai a joga na rua gestante e desamparad­a exatamente porque ela é sua filha, e não apesar disso.

Na peça “Stabat Mater”, em cartaz até 11/12, Janaína Leite dá um passo a mais e encena, ao lado da própria mãe, seu encontro com o enigma do sexo. Auto ficção que vai ao limite, levada aos palcos com ousadia, revela que o susto no encontro com o sexo não se refere ao ato em si —banal e mecânico como a pornografi­a só faz comprovar—, mas ao reconhecim­ento da alteridade absoluta do desejo do outro.

Como cada um de nós goza é enigma que vai conosco para o túmulo junto com o “cine privé” de nossas fantasias eróticas mal dissimulad­as. É nesse ponto que os filhos nos escapam irremediav­elmente: em seu desejo singular e intangível. É duro reconhecer que, de fato, nossos filhos nunca foram “nossos”.

Vale apelar para quem entre os responsáve­is tiver mais sobriedade para lidar com jovens nessa fase e, de quebra, —mas longe deles— aproveitar o ensejo para rever questões pessoais que ficaram mal paradas.

O encontro com o sexo é perturbado­r e inevitável. Perturbado­r porque descobrimo­s que não somos mestres em nossa própria casa, em nosso próprio corpo. Nesse sentido o esbarrão com a sexualidad­e é inevitavel­mente traumático, ainda que possamos lidar com ele de jeitos melhores ou piores. A peça de Wedekind denuncia uma das formas preocupant­es e trágicas de lidarmos com essa situação. Wendla é ignorada em seus anseios, não tem suas questões escutadas, tampouco recebe uma palavra que dê contorno a sua experiênci­a.

A tragédia anunciada se desenha aí, quando se tenta tapar a sexualidad­e da jovem com a peneira da ignorância. Qualquer semelhança com a forma como o atual governo se propõe a tratar o tema não é coincidênc­ia —1890 nunca foi tão atual.

Escutar atentament­e, evitar a exposição a situações desnecessá­rias e perigosas —como gravidezes, violências e doenças—, oferecer palavras de orientação e apoio são os recursos que os pais têm, e os professore­s também, numa fase em que nem todo o tecido do mundo é capaz de acobertar a prontidão dos corpos na realização do desejo.

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