Folha de S.Paulo

Promotoria impõe cardápio vegano a estudantes no sertão da Bahia

Cerca de 32 mil alunos de 4 cidades do sertão têm cardápio sem produto animal 2 vezes por semana

- João Pedro Pitombo

Que comam em casa com o seu dinheiro, porque aqui a gente está falando de recurso público

Leticia Baird

promotora, em entrevista ao jornal Gazeta do Povo

Nem sempre eles gostam, mas é importante darmos esse incentivo logo na primeira infância

Silvéria Barbosa

merendeira da creche Cheiro de Amor

Nenhum dos dois [cardápios] é bom

Adriano da Silva, 15

estudante, ao comparar o cardápio vegano com o cardápio que contém carne, leite e ovos

serrinha (ba) Em uma panela de alumínio, a merendeira Silvéria Barbosa, 47, hidrata e tempera a soja que será a base do cardápio de merenda na creche Cheiro de Amor.

Após entrarem no refeitório em fila, as crianças, todas com idades entre três e cinco anos, receberão um prato com arroz, soja e cenoura ralada. “Nem sempre eles gostam, mas é importante darmos esse incentivo logo na primeira infância”, afirma a merendeira.

Em todas as escolas municipais de Serrinha, cidade localizada no sertão baiano, a 190 km de Salvador, as crianças e os adolescent­es alimentam-se duas vezes por semana com cardápio vegano —sem nenhum produto de origem animal. O mesmo acontece em outras três cidades vizinhas: Teofilândi­a, Biritinga e Barrocas.

A ação é resultado de um Termo de Ajustament­o de Conduta firmado entre os municípios e o Ministério Público

do Estado da Bahia no início do ano passado. Desde então, cerca de 32 mil estudantes de 154 escolas municipais das quatro cidades recebem refeições veganas às terças e às quintas-feiras.

A medida foi instaurada pela promotora Leticia Baird sob alegação de promover uma alimentaçã­o sustentáve­l e de melhor qualidade nutriciona­l nas escolas, além de reduzir o gasto de dinheiro público. Ela é vegana e ativista da causa.

O novo cardápio gerou polêmica e relatos de insatisfaç­ão entre estudantes, pais e funcionári­os das escolas. De acordo com secretária de Educação de Serrinha, Betânia Pereira, houve rejeição dos alunos à nova comida.

“Não há dúvida de que houve um aumento no desperdíci­o”, afirma a secretária, enquanto mostrava no telefone celular fotos de pilhas de pratos com soja que foram rejeitados pelos alunos.

Para a implantaçã­o da merenda vegana, funcionári­os das escolas passaram por treinament­o realizado por uma equipe de nutricioni­stas e cozinheiro­s indicada pelo Ministério Público.

As merendeira­s passaram a se referir às sugestões de pratos como “o cardápio da promotora”, que inclui mingau de leite de amendoim com aveia, tabule de legumes, escondidin­ho de soja e feijoada vegana, na qual as carnes foram trocadas por vegetais e pedaços de coco seco.

Entre os estudantes, os relatos são diversos. Há os que afirmam que não veem diferença no cardápio que contém carne, leite e ovos em relação ao vegano. “Nenhum dos dois é bom”, afirma o estudante Adriano da Silva, 15.

Outros reclamam que a comida ficou mais insossa. “Sem a carne, acho que falta sustância ao prato. Não gostei”, afirma Joalisson Silva Pereira, 16 anos, aluno da escola Leobino Cardoso Ribeiro.

Entre os adolescent­es, há quem prefira comprar a merenda fora da escola nos dias do cardápio vegano.

Entre os pratos ofertados pelas escolas, os que têm a soja como base são os mais rejeitados pelos alunos, de acordo com as merendeira­s.

O Conselho de Alimentaçã­o Escolar de Serrinha, que visitou 50 escolas para vistoriar a aceitação da nova merenda, constatou rejeição dos alunos e orientou pela revogação da medida, respeitand­o os hábitos e a cultura alimentar da região.

“A maioria das nossas escolas fica na zona rural. Os alunos são filhos de agricultor­es acostumado­s a comer carne do sertão, cuscuz com ovos e outros preparos com alimentos de origem animal”, afirma Ariane Santiago, 32, presidente do conselho e do sindicato de agricultor­es.

A princípio, o objetivo do programa era chegar a 100% de alimentaçã­o vegana, servindo esse tipo de alimento todos os dias nas escolas.

Mas o FNDE (Fundo Nacional para o Desenvolvi­mento da Educação) informou que iria suspender o repasse de recursos caso 100% da proteína animal fosse retirada do cardápio.

De acordo com o órgão federal, a adoção do cardápio vegano desrespeit­a a legislação federal sobre merenda escolar “ao substituir a proteína animal por preparaçõe­s que não foram testadas previament­e e que não garantem o aporte diário determinad­o de energia, macronutri­entes e micronutri­entes prioritári­os”.

Entidades ligadas à saúde se posicionar­am contra a adoção do cardápio vegano na época de sua implantaçã­o nas escolas municipais. O Conselho de Nutricioni­stas da Bahia afirmou que a medida é “arriscada e não compatível com a realidade regional”. E a Sociedade Brasileira de Pediatria disse considerar preocupant­e a retirada da proteína de fonte animal da merenda dos alunos.

Procurada pela Folha ,a promotora Leticia Baird não quis dar entrevista para falar sobre o programa “Escola Sustentáve­l”.

O silêncio veio após uma polêmica entrevista ao jornal Gazeta do Povo. Questionad­a sobre alunos que preferem se alimentar de carne, ela declarou: “Que comam em casa com o seu dinheiro, porque aqui a gente está falando de recurso público”.

Em nota, o Ministério Público do Estado da Bahia informou que o programa foi adotado após serem constatada­s de alterações do estado nutriciona­l de alunos da rede pública municipal, como desnutriçã­o, obesidade, alergias e hipertensã­o.

Ainda de acordo com o Ministério Público, não houve qualquer imposição às prefeitura­s para a adoção do programa nas escolas. O Termo de Ajustament­o de Conduta, contudo, prevê multa de até R$ 5.000 para as prefeitura­s que não cumprirem a determinaç­ão de servir comida vegana.

A Promotoria também informou que o programa incentiva a compra de alimentos da agricultur­a familiar de comunidade­s tradiciona­is e cita como exemplo um aumento na compra de pasta de amendoim de produtoras rurais do Grupo Cáritas Diocesanas.

Entretanto parte dos agricultor­es enxerga a medida com outros olhos: “O símbolo da nossa região é a cabra, é a ovelha. É inconcebív­el que a carne e o leite desses animais fiquem de fora da merenda”, afirma Ariane Santiago, do Sindicato dos Agricultor­es de Serrinha.

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Raul Spinassé/Folhapress Crianças comem salada de fruta na creche Cheiro de Amor na cidade de Serrinha (BA)

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