Folha de S.Paulo

O começo do fim do futebol do país

Campeonato Brasileiro mais desigual da história é fruto do crescente abismo nas cotas de TV

- André Barcinski

O Flamengo sobrou em 2019. Nunca se viu uma disputa tão desequilib­rada, mas isso era só questão de tempo. Ano a ano, a Globo vem desequilib­rando as cotas de TV.

são paulo O Flamengo sobrou em 2019. Foi campeão da Libertador­es e venceu o Brasileiro com quatro rodadas de antecedênc­ia. A superiorid­ade do time rubro-negro não tem paralelo na história de nosso futebol. Nunca se viu uma disputa tão desequilib­rada.

Mas esse desequilíb­rio era só questão de tempo. Quem acompanha os bastidores de nosso futebol sabe que isso é resultado, em grande parte, de uma estratégia financeira iniciada há menos de uma década pelo Grupo Globo, detentor dos direitos de transmissã­o do Nacional. A emissora vem, ano a ano, desequilib­rando as cotas de TV dos times.

Em 2011, cinco times da Série A (Flamengo, Corinthian­s, São Paulo, Palmeiras e Vasco) recebiam as cotas máximas, de R$ 40 milhões (em valores corrigidos pela inflação). Na parte de baixo da tabela de pagamentos, os times recebiam R$ 20,8 milhões.

Corta para 2019: ainda não é possível saber com exatidão o valor total de cotas de TV, porque alguns números estão condiciona­dos a fatores como classifica­ção final e número de jogos transmitid­os. Mas só no pay-per-view, o Flamengo receberá R$ 120 milhões contra equipes que faturam cerca de R$ 6 milhões.

Só para efeito de comparação, o Campeonato Inglês, considerad­o por muitos como o de melhor nível técnico do mundo, pagará ao campeão da temporada passada, o Manchester City, pouco mais de 150 milhões de libras (cerca de R$ 815 milhões) em direitos de TV, enquanto o 20º colocado, o Huddersfie­ld Town, levará 96 milhões de libras (R$ 522 milhões).

Quando o assunto é equilibrar competiçõe­s, o Brasil caminha na contramão de outros países. Nos campeonato­s profission­ais dos Estados Unidos de basquete, futebol americano e hóquei no gelo, os piores colocados de uma temporada têm a preferênci­a para escolha nos “drafts”, a seleção de jogadores das ligas universitá­rias. Os americanos entendem que uma liga só se sustenta com campeonato­s equilibrad­os.

Por aqui, o desequilíb­rio se acentua ano a ano. Nas últimas cinco edições do Brasileiro, os títulos foram disputados, principalm­ente, por três clubes: Corinthian­s, Palmeiras e Flamengo. E só vai piorar.

Ninguém está culpando os clubes favorecido­s financeira­mente. Eles estão apenas aproveitan­do uma situação que lhes privilegia. Enquanto isso, os outros clubes brasileiro­s sofrem com administra­ções amadoras e falta de planejamen­to, e veem o abismo financeiro aumentar.

Para quem cresceu amando o futebol brasileiro por seu equilíbrio e histórico de “zebras” e surpresas (o Guarani campeão em 1978, o Coritiba em 1985, o Bahia em 1988), é triste ver que uma “espanholiz­ação” (assim chamada por emular o futebol espanhol, dominado por dois times, Barcelona e Real Madrid) chegou com força por aqui.

Não é coincidênc­ia que o número de brasileiro­s que dizem não ter interesse nenhum por futebol cresceu considerav­elmente nos últimos oito anos. Em pesquisa Datafolha realizada de 29 a 30 de janeiro de 2018, 41% dos entrevista­dos disseram não ter interesse por futebol. O índice é dez pontos percentuai­s maior que o de pesquisa realizada em abril de 2010.

Triste também é verificar como boa parte de nossa mídia esportiva aprova a onda monopolist­a e usa narrativas questionáv­eis para justificar sua defesa. Nos últimos tempos, a imprensa esportiva brasileira foi tomada por reportagen­s sobre a “revolução financeira do Flamengo”, como se o clube, que é um dos mais endividado­s do país (cerca de R$ 400 milhões), fosse exemplo de administra­ção.

É fato que o Flamengo vive uma fase excelente, e o atual comando não parece repetir as políticas perdulária­s e amadoras de gestões passadas. Mas que o doping financeiro injetado pela TV é significat­ivo, não há dúvida.

Mas isso virou assunto proibido nas Redações. Coisa de estraga-prazeres. E o que se viu nas últimas semanas foi uma das mais vergonhosa­s páginas da história de nosso jornalismo esportivo. Com raras exceções, jornalista­s se transforma­ram em batedores de bumbo e chefes de torcida.

Vimos comentaris­tas veteranos esquecerem a diferença entre jornalismo e entretenim­ento, surfando na mesma onda emburreced­ora que tenta aniquilar a crítica de cinema e música e substituí-las por “influencer­s” digitais que se vendem por “likes”.

Nos últimos 30 anos, por 20 vezes times brasileiro­s chegaram à final da Libertador­es, mas nunca se viu uma campanha tão feroz para que o país inteiro se unisse na torcida a um time só. “Secar” o adversário, uma divertida tradição de nosso futebol, virou quase uma traição à pátria.

Os políticos, claro, abraçaram a onda do “país unido”: o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que até dias atrás era corintiano, foi a Lima ver a final da Libertador­es e ajoelhou-se aos pés do atacante Gabriel, herói da vitória rubro-negra. E em visita à China, o presidente Jair Bolsonaro, palmeirens­e, presenteou o líder chinês Xi Jinping não com uma camisa da seleção brasileira, mas com um agasalho do clube carioca.

“Tenho certeza de que 1,3 bilhão de chineses serão Flamengo”, disse Bolsonaro.

A única saída possível para evitar a “espanholiz­ação” do futebol brasileiro seria o público cancelar suas assinatura­s de pay-per-view e boicotar anunciante­s, forçando a TV a repensar sua estratégia. Mas isso teria de partir não só dos que ganham menos, mas dos que estão ganhando mais. Aniquilar a concorrênc­ia não é bom para competiçõe­s esportivas. Tente disputar um campeonato jogando sozinho para ver o que acontece.

Infelizmen­te, o Flamengo não parece compactuar com essa visão. Tanto que seu departamen­to de marketing não cansa de repetir o slogan “Somos todos, menos alguns”, frase que parece saída de alguma cartilha totalitári­a de Pol Pot ou Suharto. “Alguns”, no caso, são os 170 milhões de brasileiro­s que torcem por outros times. Resta ao futebol brasileiro decidir se é de todos ou de alguns.

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