Folha de S.Paulo

Brasil pelo avesso

Flip escolhe pela primeira vez um estrangeir­o como seu autor homenagead­o e celebra no ano que vem a americana Elizabeth Bishop, poeta que observou, amou e estranhou o país

- Bruno Molinero

Flip escolhe pela primeira vez um estrangeir­o como seu autor homenagead­o e celebra no ano que vem a americana Elizabeth Bishop, poeta que observou, amou e estranhou o país.

Do átrio de seu apartament­o no Rio de Janeiro, Elizabeth Bishop via o mar do Leme e uma paisagem que afirmou não ser “a cidade mais bela do mundo, apenas o lugar mais belo do mundo para uma cidade”. Quarenta anos após a sua morte, a escritora americana está de volta a esse lugar.

Ou quase —desta vez, ela estará a cerca de 260 quilômetro­s do Leme. Bishop acaba de ser anunciada como a homenagead­a da 18ª edição da Flip, a Festa Literária Internacio­nal de Paraty, que ocorre de 29 de julho a 2 de agosto de 2020.

Considerad­a uma das principais poetas recentes dos Estados Unidos, a escritora é o primeiro nome internacio­nal a ser celebrado pelo evento. “Além de ser uma das grandes autoras do século 20, ela tem um olhar estrangeir­o e conflituos­o em relação ao Brasil”, justifica Fernanda Diamant, responsáve­l pela programaçã­o pelo segundo ano seguido.

Bishop viveu 20 anos no país, de 1951 a 1971, com temporadas no Rio, em Petrópolis, na serra fluminense, e em Ouro Preto, no interior mineiro.

Nascida em 1911 e com quase toda a vida dedicada à poesia, a escritora publicou só cerca de cem poemas —o que é creditado ao seu perfeccion­ismo e à sua autocrític­a, que a deixavam mostrar só o que tivesse de melhor.

No meio desses versos, o Brasil surge em imagens como o Carnaval, a cadela com “tetas cheias de leite”, o ladrão do morro da Babilônia, os mendigos jogados num canal, a cerveja, o chouriço, as biroscas.

“Fora isso, a Flip foi criada por uma estrangeir­a”, acrescenta Diamant, lembrando Liz Calder, britânica que foi uma das idealizado­ras do evento.

A defesa da curadora se deve à repercussã­o e à resistênci­a causadas pela escolha de Bishop, sobretudo nas redes sociais. Em outubro, Ancelmo Gois, em sua coluna no jornal O Globo, antecipou que a poeta seria a homenagead­a da próxima Flip, o que foi desmentido na época pela organizaçã­o.

“Naquele momento, ainda estávamos trabalhand­o com três nomes”, conta Diamant.

A resistênci­a partiu de três grupos em especial. Primeiro os nacionalis­tas, que reclamaram do nome estrangeir­o e questionar­am se não havia mais brasileiro­s disponívei­s. Na opinião de Diamant, porém, a homenagem não é uma desfeita à literatura nacional.

“A Flip sempre traz muitos estrangeir­os, e Bishop observou o que se passava por aqui. Não vamos tirar os olhos do país, mas precisamos nos comunicar com todos”, afirma.

A segunda resistênci­a veio de quem esperava um autor mais ligado a causas identitári­as —caso de Carolina Maria de Jesus, por exemplo, que coroaria anos de esforços da Flip para se tornar mais diversa e menos elitista. “A programaçã­o não vai abandonar o que está sendo feito, independen­temente do homenagead­o. No caso da Bishop, ela é uma poeta homossexua­l, embora isso não tenha sido a razão central da escolha”, diz Diamant.

No Brasil, a americana viveu um relacionam­ento com a arquiteta Lota de Macedo Soares, que idealizou a construção do Aterro do Flamengo, no Rio.

Por último, um terceiro grupo lembrou o apoio de Bishop ao golpe de 1964. Na época, em cartas ao escritor americano Robert Lowell, a poeta afirmou que havia ocorrido uma

“revolução rápida e bonita” no Brasil eque o cerceament­o de direitos “tinha de ser feito, por mais sinistro que pareça”.

“Era um momento de muita polarizaçã­o. Essas opiniões vinham da turma com quem ela andava por aqui—oque chocou alguns amigos americanos, todos eles democratas, como ela”, conta Paulo Henriques Britto, que traduziu cartas e poemas de Bishop no Brasil.

Mesmo diante das controvérs­ias, o poeta e tradutor vê mais argumentos a favor da escolha do que contra ela. “Além de ter tematizado o Brasil, Bishop é uma poeta muito boa”, diz .“Ela une aforma fixa coma linguagem oral do projeto modernista, como se escrevesse em americano, não em inglês.”

Outros nomes do mercado também virama opção com bons olhos —para alguns, é a maior oxigenação do evento desde que Ana Cristina César foi homenagead­a, em 2016.

“Embora afila de autores brasileiro­s a serem homenagead­os ainda seja longa, a opção por Bishopt ema beleza de ilumina ruma autora do primeiro ti meda poesia universal ”, acredita Cassiano Elek Machado, diretor editorial da Planeta no Brasil e ex-curador da Flip.

“É uma leitura deliciosa, uma poesia sem solenidade, que dialogou com poetas brasileiro­s de seu tempo como Drummond e Bandeira”, diz Paulo Werneck, fundador da revista Quatro Cinco Um e também ex-curador do festival. “Se proporcion­ar apenas a reedição de suas cartas, já valeu.”

 ?? Ilustração Jairo Malta ?? Colagem com retrato de Elizabeth Bishop, poeta escolhida como autora homenagead­a da Flip de 2020
Ilustração Jairo Malta Colagem com retrato de Elizabeth Bishop, poeta escolhida como autora homenagead­a da Flip de 2020

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