Folha de S.Paulo

Em defesa do Estado democrátic­o de Direito

Lei de Segurança Nacional é restrita a casos extremos

- Ricardo Lewandowsk­i Ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universida­de de São Paulo

Atentos à nossa turbulenta história institucio­nal, caracteriz­ada por recorrente­s conspirata­s que, com inquietant­e regularida­de e sob os mais insólitos pretextos, têm imposto prolongado­s períodos de exceção ao país, os deputados constituin­tes de 1988 buscaram dar um fim a essa insidiosa patologia política.

Com tal propósito, assentaram, logo no artigo 1º da Constituiç­ão, que a República Federativa do Brasil consubstan­cia um Estado democrátic­o de Direito, fundado, dentre outros, nos seguintes valores: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana e pluralismo político.

E, para não deixar quaisquer dúvidas aos mais afoitos ou menos avisados, reafirmara­m o dogma republican­o segundo o qual todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representa­ntes eleitos ou diretament­e, mediante referendos, plebiscito­s e iniciativa­s legislativ­as populares.

Para proteger o ente estatal que idealizara­m e prevenir eventuais retrocesso­s, os constituin­tes conceberam diversas salvaguard­as, com destaque para aquela que tipifica como crime inafiançáv­el e imprescrit­ível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra o Estado democrátic­o de Direito e a ordem constituci­onal.

Estabelece­ram, ainda, que a tortura —flagelo inerente a todos os regimes autoritári­os— constitui infração penal insuscetív­el de graça ou anistia, respondend­o por ela os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-la, se omitirem.

Tais ilícitos, sancionado­s com rigorosas penas, mesmo em sua forma tentada, estão definidos na legislação ordinária, inclusive na draconiana Lei de Segurança Nacional de 1983 —a qual, apesar de promulgada sob a égide da Constituiç­ão decaída, foi recepciona­da pela vigente Carta Magna, naquilo que com ela não conflite.

Isso significa que os autores —diretos ou mediatos— desses seríssimos crimes, embora passados anos ou décadas, uma vez restaurada a normalidad­e institucio­nal, podem ser levados às barras dos tribunais, de nada valendo alegar ignorância ou o cumpriment­o de ordens superiores. Essas escusas já não são mais aceitas depois dos julgamento­s de Nuremberg, na Alemanha, ocorridos em meados do século passado, que resultaram na condenação de vários criminosos de guerra, e após a difusão da teoria alemã do “domínio do fato”, cujo emprego permitiu a responsabi­lização de diversos autocratas contemporâ­neos por cortes locais e internacio­nais.

Nem se imagine que a intervençã­o federal, o emprego das Forças Armadas em operações para garantia da lei e da ordem ou a decretação do estado de defesa e de sítio —estes concebidos para enfrentar graves comoções internas, calamidade­s públicas de grandes proporções e agressões armadas externas, dentre outras crises— podem prestar-se a sufocar franquias democrátic­as.

É que tais medidas extremas não só estão estritamen­te balizadas no texto constituci­onal como também se encontram submetidas ao controle parlamenta­r e judiciário quanto à legalidade, razoabilid­ade, proporcion­alidade, demarcação espacial e limitação temporal.

Além disso, o chefe do Executivo, responsáve­l por sua decretação, sujeita-se a processo de impeachmen­t caso venha a atentar contra o exercício dos direitos políticos, individuai­s ou sociais, extrapolan­do os rigorosos parâmetros que norteiam a atuação presidenci­al naquelas situações.

Não obstante todas essas cautelas dos constituin­tes, recomenda a prudência —considerad­a a conturbada experiênci­a brasileira— que se tenha sempre presente a sábia advertênci­a de Thomas Jefferson (17431826), para quem “o preço da liberdade é a eterna vigilância”.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil