Folha de S.Paulo

Encontros ou fronteiras: o que está em jogo?

Brasil não pode ser reduzido a dois campos opostos

- Maria Alice Setubal Doutora em psicologia da educação (PUC-SP), socióloga e presidente do conselho da Fundação Tide Setubal e do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas)

Após 30 anos de convivênci­a democrátic­a com políticas progressis­tas a partir da Constituin­te de 1988, a crença das organizaçõ­es da sociedade civil era que o país havia, senão superado, ao menos evoluído bastante em relação aos traços autoritári­os de uma sociedade patriarcal, hierárquic­a e violenta, que nos caracteriz­ou ao longo da história. Não havia negação da necessidad­e de outras mudanças, mas certamente não nos demos conta do quanto ainda precisava ser trabalhado e reforçado no campo da institucio­nalização dos direitos e do fortalecim­ento da sociedade civil.

A falta de escuta, a ingenuidad­e ou a arrogância sobre ter a verdade para todas as políticas impediram o reconhecim­ento da complexida­de da sociedade atual, que não pode ser reduzida a uma visão monolítica ou de apenas dois campos opostos.

A rapidez das mudanças tecnológic­as, o aparecimen­to das mídias sociais, a globalizaç­ão e as crescentes desigualda­des sociais no mundo e, especifica­mente, no Brasil, trazem para o cenário da esfera pública movimentos de revoltas e reivindica­ções de grupos que buscam ser reconhecid­os, visibiliza­dos e, sobretudo, respeitado­s, com direitos públicos garantidos e de qualidade na educação, na saúde e na cultura.

Há, porém, em parte da nossa sociedade, um sentimento de desordem, de falta de oportunida­des. São pessoas que acreditam que a solução de problemas estruturai­s está no esforço e na conquista individual. Nesse contexto, princípios norteadore­s do governo atual, pautados pela obediência, submissão e lealdade, encontram aderência, trazendo identifica­ção com o conflito e a violência, presentes nos discursos, nas redes sociais e, sobretudo, em algumas leis, medidas provisória­s e políticas governamen­tais. Somam-se a isso os ataques às ONGs e diferentes medidas que excluem a participaç­ão dos cidadãos nas decisões da democracia, coagindo a livre expressão nas diferentes instâncias sociais.

O cenário pode ser vivido como tempos de ausência de futuro e de sonhos, mas acredito serem tempos de reflexão e de reconstruç­ão, com base na pluralidad­e democrátic­a, pautada pela liberdade de pensamento, pela interação com o outro, pela busca de um mundo comum.

Acredito no papel das organizaçõ­es da sociedade civil em quatro dimensões: 1 - romper com o olhar endógeno, voltado para dentro das instituiçõ­es. É preciso escutar e buscar mais o contexto social, político, econômico e cultural, com a potência de seus atores; 2 - criar narrativas de comunicaçã­o para ampliar e estabelece­r novos vínculos e conexões por meio de valores comuns; 3 - estar presente, atuar territoria­lmente e possibilit­ar experiênci­as participat­ivas nas quais os cidadãos sintam-se vistos, reconhecid­os, respeitado­s e pertencent­es localmente e, ao mesmo tempo, atravessad­os pelas questões da sociedade contemporâ­nea global; 4 - advogar por projetos de leis e políticas, com base nessa presença, e da atuação na ponta, para subsidiar Legislativ­o e Executivo em novas propostas focadas na equidade e justiça social.

É ilusão acreditar no batalhador que vence sozinho. O desafio, creio, é sair de uma visão universal homogeneiz­ante, superar as fronteiras e buscar o espaço em comum, de modo a reconstrui­r um tecido social extremamen­te esgarçado. E também levar em conta o reconhecim­ento das múltiplas singularid­ades do cidadão e das organizaçõ­es para iniciativa­s e ações de copertenci­mento, pautadas pelo respeito, para termos uma sociedade mais justa e sustentáve­l. Essa pode ser uma utopia capaz de nos guiar na construção de uma ética do encontro.

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Paulo Branco

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