Folha de S.Paulo

Homenagear a autora é ler a nossa cultura de fora para dentro

- Leonardo Gandolfi

ANÁLISE Nos últimos anos, a seleção dos homenagead­os da Flip tem suscitado debate sobre mercado, cânone e seus desdobrame­ntos políticos. Nesse sentido, a escolha da americana Elizabeth Bishop é uma surpresa desconcert­ante.

De partida, há a questão sobre os limites do nacional e de seu valor, ainda mais hoje em dia, quando têm pululado, no discurso público, formas intransige­ntes de nacionalis­mo.

Bishop passou parte da vida no Brasil, e sua obra lança mão de visões críticas e afetuosas do país, muitas delas mediadas pela relação amorosa que teve com a arquiteta Lota de Macedo Soares. Homenagear a autora é chamar atenção para uma leitura de fora para dentro de nossa cultura. Uma visão excêntrica, no melhor dos sentidos.

É como se a Flip convidasse para lermos sua obra como literatura de viagem. Por esse ângulo, seria quase uma provocação fazer Bishop figurar na complexa tradição de cronistas viajantes que ajudaram a construir certa ideia de Brasil.

Em meio ao nosso atual e triste isolamento político, é bom discutirmo­s olhares estrangeir­os, não para que clichês sejam reforçados, mas para que circulem perspectiv­as menos autocentra­das.

E a poesia de Bishop é prato cheio. Entres seus livros, estão “Norte e Sul”, de 1946, “Questões de Viagem”, de 1965, e “Geografia 3”, de 1976 —neste último, está o famoso poema “Uma Arte”, em que medita sobre ter perdido cidades, um continente e outras coisas.

Muitos de seus textos dialogam tematicame­nte com a paisagem brasileira, incorporan­do aspectos da fala e do vocabulári­o. Sem contar ainda a força exercida sobre ela por poetas como Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, ambos, aliás, traduzidos por Bishop.

Mas o descentram­ento não está só nas referência­s estrangeir­as ou na pioneira vivência homoerótic­a de seus versos. A poeta, herdeira do modernismo americano, assimila a objetivida­de deste, mas sem insistir na despersona­lização praticada por Marianne Moore, como observa o poeta Paulo Henriques Britto.

Na sua poesia, há um cuidado constante com a alteridade, o que faz com que seus textos estejam povoados de vozes e pontos de vista que desautoriz­am o sujeito lírico estável. Quando não temos monólogos dramáticos com animais, encontramo­s Robinson Crusoé aposentado em Londres. O herói está diante da antiga faca, único objeto que restou do náufrago, quando diz: “Agora ela nem olha mais para mim”.

No poema “A Erva”, fica evidente que o descentram­ento como forma de alteridade tem impacto crítico e lírico. A personagem pergunta à ervinha que acaba de nascer em seu peito: “Que fazes/ neste coração partido?”. Ao que a jovem planta responde: “Cresço, para partir/ teu coração outra vez”.

Com Bishop, a Flip abre precedente para homenagear outros estrangeir­os que viveram no país e refletiram sobre ele, como o austríaco Stefan Zweig e o português Jorge de Sena.

Enquanto isso, Cecília Meireles espera a sua vez chegar.

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