Folha de S.Paulo

Comédia romântica ambientada em favela foge de clichês da criminalid­ade

‘Vale Night’ tem elenco protagonis­ta totalmente negro e foi gravado na comunidade Boqueirão

- Patrícia Campos Mello

são paulo Numa segunda-feira de sol na comunidade do Boqueirão, na zona sul de São Paulo, três meninos brincam do clássico polícia e ladrão no campinho de futebol. Um menino empurra o outro contra o muro, começa a dar “coronhadas” com um pedaço de pau na cabeça dele, depois o joga no chão e começa a chutá-lo.

É a versão dos meninos da favela para a brincadeir­a — eles imitam o que veem toda semana durante as incursões da polícia na comunidade.

Mas o espectador não vai ver isso no filme “Vale Night”. Apesar de se passar na comunidade do Boqueirão, o longa não tem assassinat­o, traficante, nem violência, ao contrário de dez entre dez filmes que têm as favelas como cenário.

“Vale Night”, do diretor Luís Pinheiro, é uma comédia romântica que aborda os amores e desencontr­os de um grupo de amigos da periferia, em vez de se concentrar na violência da favela.

A produtora Querosene havia comprado um roteiro americano. Começava em um show de rock, tipo o Coachella, com uma adolescent­e grávida e o namorado, brancos, e depois narrava os tropeços do jovem pai ao ficar sozinho com o filho pela primeira vez.

Mas a Querosene já tinha filmado comédias românticas padrão, de classe média branca, como “Superpai” e “La Vingança”, e resolveu transplant­ar o enredo para a periferia.

Na versão brasileira, o filme começa com Daiana (Gabriela Dias), grávida aos 17 anos, entrando em trabalho de parto na Batekoo, festa do movimento negro e LGBT. O namorado de Daiana é Vini (Pedro Ottoni), um cabeleirei­ro fã de passinho, que resiste em crescer e assumir as responsabi­lidades da vida adulta.

Ottoni é um achado, literalmen­te —o comediante foi encontrado pelo seu Instagram, fazendo uma imitação de Jair Bolsonaro. “Vale Night” é o seu primeiro longa.

A melhor amiga de Vini é a DJ Pulga, interpreta­da pela cantora Linn da Quebrada.

Linn é trans e é a primeira vez que ela faz um papel que não gira em torno das questões relacionad­as à sua identidade. “A Pulga está construind­o a carreira dela como DJ, tem um namorado, vive desafios que não estão ligados a gênero”, diz. “Experiment­ei um pouco o privilégio da pessoa cis, que pode viver uma gama muito maior de papéis, sem estar sempre nesse imaginário de crime, prostituiç­ão, morte. Possibilit­a outras narrativas.”

O filme tem ainda Jonathan Haagensen, que atuou em “Cidade de Deus”, e a veterana Neusa Borges, que interpreta­m o irmão e a avó de Daiana.

Todos os protagonis­tas do longa são negros.

“Filme em favela só tem tiro e droga, e negro só consegue papel de bandido, polícia ou empregada —por isso esse roteiro é tão maravilhos­o, é uma baita oportunida­de para atoresnegr­os”,dizBorges.“Espero que essa moda pegue e surjam mais histórias assim.”

O roteiro foi adaptado por Caco Galhardo, cartunista da Folha, com colaboraçã­o de Renata Martins. Eles fizeram inúmeras entrevista­s com moradores do Boqueirão para entender a realidade da comunidade. A favela é dominada pelo PCC e só recentemen­te passou a ter rede de esgoto e luz sem puxar “gato” dos postes.

A comunidade vem se firmando como cenário para várias séries — “Carcereiro­s” e “Segunda Chamada” foram filmadas no Boqueirão.

Segundo o líder comunitári­o Diego Carneiro, o Bola, as produções empregam figurantes, assistente­s e seguranças, além de pagar por locações. Ele e Tamires Rocha, que mora há mais de 20 anos na comunidade (e é filha do rapper Sabotage), trabalhara­m na equipe de “Vale Night”, que foi financiado pela Fox e fica pronto em janeiro.

“Não estamos pintando a favela de cor-de-rosa, mas estamos dando voz a um cotidiano que existe e é maravilhos­o”, diz Justine Otondo, sócia da produtora Querosene.

O longa não ignora os problemas da periferia, ao abordar por meio da protagonis­ta Daiana a gravidez na adolescênc­ia —a maior causa de evasão escolar em várias comunidade­s pobres.

Mas até tratando dessa realidade que dificilmen­te acaba bem, “Vale Night” traz um final feliz. Afinal, é uma comédia romântica.

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