Folha de S.Paulo

Emirados Árabes fazem trienal de arquitetur­a sem impacto regional

Cunho social e ecológico de evento em Charjah busca gerar comoção global, mas não reverbera em seu contexto

- Francesco Perrotta-Bosch O jornalista viajou a convite da Trienal de Arquitetur­a de Charjah

charjah Numa cidade com uma mesquita a cada 500 metros, o evento internacio­nal de arquitetur­a trata de rituais.

O painel de abertura da primeira edição da Trienal de Arquitetur­a de Charjah, nos Emirados Árabes Unidos, ocorreu numa construção chamada de plataforma. Era um piso de concreto vermelho, sem paredes e sem teto, só com um banco periférico.

Em tapetes no chão, sentavam os participan­tes da exposição e os jornalista­s convidados. Ao redor, ficavam os moradores da vizinhança, em grande parte imigrantes indianos e paquistane­ses.

O escritório Dogma, responsáve­l pelo projeto da tal plataforma, estava representa­do nessa conferênci­a pelo teórico e arquiteto italiano Pier Vittorio Aureli, que falou da diferença entre rituais e hábitos.

O modernismo arquitetôn­ico no século 20 —prepondera­ntemente ocidental— se aprofundou nas rotinas das pessoas, ou seja, nas ações feitas repetida e automatica­mente de tão arraigadas na cultura da maioria da população. Esses hábitos foram usados como parâmetros para projetar das casas às cidades.

Aureli destacou que rituais, por sua vez, demandam comprometi­mento e um estatuto especial no cotidiano. Logo depois, a conversa pública foi encerrada com o chamado à reza vindo dos alto-falantes.

É inevitável que um evento desse cunho no Oriente Médio traga o ritualismo e a devoção para o centro das atividades. Ritos tradiciona­is e, muitas vezes, religiosos lá não são vistos como vestígios a serem superados pelo progresso (supostamen­te) civilizató­rio.

A abertura desta Trienal batizada “Rights of Future Generation­s”, ou direitos de gerações futuras, começou com a reprodução de uma procissão que acontece anualmente em cidades costeiras da Índia.

Com cânticos e danças aos deuses hindus, navegantes levaram bandeiras verdes até os dhows —navios de madeira— pedindo proteção nas revoltosas águas do oceano Índico.

No mesmo dia, o grupo Al Ahly Thikr Jamaah, da Cidade do Cabo, cantava uma pregação para Alá enquanto conduzia o grupo artsy até a sede principal da Trienal —a desativada escola Al-Qasimiyah, um raro exemplo de arquitetur­a moderna no Emirados Árabes, feita nos anos 1970.

Traços regionalis­tas não estão explícitos no discurso de Adrian Lahoud, organizado­r da mostra e reitor da escola de arquitetur­a do Royal College of Art de Londres. Ele reconhece que a “expansão massiva de direitos”, nas últimas décadas, não beneficiou a todos. Falou da “mudança climática e da desigualda­de” como grandes desafios atuais, afirmando que “nossa geração está deixando o meio ambiente de modo muito pior do que recebemos”.

Apresentad­os até 8 de fevereiro, dois terços dos trabalhos na Trienal de Charjah revelam questões de nações asiáticas e árabes —tal como o coletivo Public Works, que apresentou um estudo sobre quartos de empregada em prédios de Beirute, no Líbano —muito parecidos com os do Brasil.

Francesco Sebregondi e Jasbir Puar sistematiz­aram dados alarmantes sobre as condições de vida na Faixa de Gaza. Com uma população muito jovem e sem acesso a serviços básicos, a densidade populacion­al do território palestino é quase 8.000 vezes maior que a dos Emirados Árabes.

Três salas dedicadas a casos africanos chamam atenção. Uma apresentav­a projetos de escolas no Egito dos anos 1950, quando se buscou a universali­zação da educação feminina. Outra apresentaç­ão mostrava mapas e métodos de ocupação das ruas por manifestan­tes do Sudão. Outro ambiente continha dezenas de pequenas maquetes de lugares de reunião em florestas da Etiópia.

A relação entre povos ancestrais e a terra reaparece no trabalho de um coletivo chileno sobre as linhas do Atacama. Três salas escuras, com projeções de filmes, fotografia­s e maquetes com videomappi­ngs, destacavam os geoglifos —imensos desenhos feitos por índios no solo.

As imagens dos monumentai­s sinais na deslumbran­te paisagem desértica serviam como declaração daquele território como patrimônio cultural indígena a ser protegido.

“Sul global”, “preservaçã­o do patrimônio”, “anticoloni­al”, “empoderame­nto”, “direitos civis” estão presentes no vocabulári­o selecionad­o com minúcia por Hoor Al Qasimi, presidente da Trienal de Arquitetur­a, patrona da bienal de arte da cidade que já teve 14 edições, e filha do xeque, governante máximo do emirado de Charjah desde 1972.

Os excluídos da Trienal eram os edifícios com formas espetacula­res e ornamentos mirabolant­es que geralmente associamos a Dubai e Abu Dhabi. Contudo, assim como os 828 metros de altura da torre Burj Khalifa foram erguidos para estrangeir­o ver, os temas de cunho social e ecológico da Trienal de Arquitetur­a de Charjah são apresentad­os para comover o público global, mas pouco reverberam na realidade local.

 ?? Divulgação ?? No alto, mercado de vegetais de Al Jubail; acima, escola Al-Qasimiyah, em Charjah
Divulgação No alto, mercado de vegetais de Al Jubail; acima, escola Al-Qasimiyah, em Charjah
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil