Folha de S.Paulo

Prognóstic­o reservado

Na Europa, a doença antissemit­a sobreviveu a 1945

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa | dom. Drauzio Varella, Fernanda Torres | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Contardo Calligaris | sex. Djamila

De vez em quando, nas minhas aulas de história contemporâ­nea, pergunto aos alunos: alguém sabe qual era a porcentage­m de judeus na totalidade da população alemã quando Hitler subiu ao poder?

Começam os palpites: 25%? Cinquenta por cento? Setenta por cento? Dou uma ajuda e avanço com um número: falamos de 572 mil pessoas, mais coisa, menos coisa. Mesmo assim, as cifras continuam estratosfé­ricas: 20%? Quinze por cento?

Quando revelo que a porcentage­m era de 0,8% o espanto da moçada é tangível.

Entendo esse espanto. Se nós ficarmos apenas pelos delírios antissemit­as da época (os judeus dominavam governos, negócios, mercados financeiro­s, indústrias de guerra etc.), até acreditamo­s que eles eram majoritári­os.

Não eram. Em 1933, só na Polônia (10%) ou na Hungria (5%) a população judaica se elevava um pouco acima da insignific­ância. Os judeus eram uma gota no oceano europeu.

O antissemit­ismo da década de 1930 era apenas mais um capítulo de um história antiga: uma história que, segundo o historiado­r Paul Johnson em ensaio clássico sobre o tema (“The Anti-Semitic Disease”), começa em Alexandria, no século 3º a.C., e que foi sempre adquirindo novas camadas e feições até os nossos dias.

De assassinos de Cristo a raça inferior e impura, sem esquecer a acusação coletiva que hoje paira sobre todos os judeus quando o assunto é Israel (até sobre os antissioni­stas!), estamos sempre na presença de uma “doença intelectua­l”, na definição de Johnson.

É uma doença que existe e persiste sem haver nenhuma razão palpável que a justifique. Ainda nas palavras do historiado­r, a história do antissemit­ismo é “um dicionário de non sequiturs e antônimos”, ou seja, meros devaneios ou preconceit­os que se anulam mutuamente.

Exemplific­a Johnson: “Os judeus estão sempre a exibirse; eles são herméticos e sigilosos. Eles não se integram; eles integram-se bem demais. Eles são demasiado religiosos; eles são demasiado materialis­tas e uma ameaça para a religião. Eles são incultos; eles têm demasiada cultura. Eles evitam o trabalho manual; eles trabalham em demasia. Eles são avarentos; eles são gastadores. Eles são capitalist­as incorrigív­eis; eles são comunistas natos”.

Lembrei tudo disso quando lia o mais recente estudo da Anti-Defamation League, a ADL, sobre a presença de antissemit­ismo no mundo. A ADL confrontou 18 países, Brasil incluso, com 11 proposiçõe­s clássicas do antissemit­ismo “soft” e “hard”.

Na primeira categoria estão afirmações aparenteme­nte anódinas de que os judeus se acham melhores do que os outros ou, em alternativ­a, de que só se preocupam com os seus.

Na segunda categoria está, mais uma vez, a litania da dominação judaica global —da política à mídia, da economia à indústria de guerra.

Só uma das asserções seria impensável em 1933: a de que os judeus falam demasiado do Holocausto. Em 1933, lógico, esse Holocausto ainda estava em preparação.

Os resultados são tristes e, à sua maneira, banais, porque o antissemit­ismo virou banalidade: 24% dos europeus adultos continuam a navegar essas águas infectas. Isso na Europa Ocidental. Quando viajamos para leste, o número sobe para os 34%.

Mas é sobretudo quando olhamos para alguns países da região —a Polônia, a Hungria— que o retrato adquire cores sinistras. Na Polônia, o antissemit­ismo conquista 48% da população adulta. Na Hungria, 42%.

E, quando olhamos para as respostas dos inquiridos, parece que poloneses e húngaros são particular­mente sensíveis ao tema do Holocausto: para eles, os judeus dedicam demasiada atenção ao assunto.

O que permite conjectura­r que, se o Holocausto fosse esquecido, talvez o mundo se esquecesse também do papel que poloneses e húngaros “gentios” tiveram no processo. E o Brasil?

Poucas razões para festejar, bom povo: a situação é semelhante à europeia (25% partilham opiniões antissemit­as). Pode parecer pouco, sobretudo quando olhamos para a vizinha argentina (30%, uma surpresa para mim). Mas é um cresciment­o de 9% quando comparamos os resultados de 2019 com uma enquete anterior de 2014. O que explica essa subida? Responda você, leitor.

Comecei com uma pergunta, termino com outra: qual a porcentage­m de judeus na população total europeia em 2019?

Não perca tempo, eu respondo já: uma estimativa realista não ultrapassa os 0,2%.

Saber que um em cada quatro europeus acredita que 0,2% da população controla as alavancas do poder é a prova definitiva de que a doença antissemit­a sobreviveu a 1945.

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Angelo Abu

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