Folha de S.Paulo

Monólogo com Irene Ravache é obra superficia­l e desconjunt­ada

‘Alma Despejada’ reúne passagens engraçadas e tocantes, mas acaba tendo efeito contraditó­rio e confuso

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Alma Despejada *****

Teatro Porto Seguro, al. Br. de Piracicaba, 740, Campos Elíseos, São Paulo. Qua. e qui., às 21h. Até 28/11. R$ 60 a R$ 70

Nelson de Sá

“Alma Despejada” é um espetáculo que sofre com os ventos políticos que mudam de direção toda hora no país.

O monólogo retrata, em suma, como a “alma” de uma mulher recorda a família, o casamento com um empresário que se apresenta bemsucedid­o, bom pai —e que se descobre um corruptor que compra um deputado também amigo.

Não é solo confession­al, psicológic­o, mas em grande parte uma discussão política, do ponto de vista de uma mulher que morreu nos seus 70, 80 anos. Concentra-se nos temas do poder, aqueles que o país viveu e ainda vive.

A escolha pela autora, Andrea Bassitt, de figura tão próxima para questionar as certezas de Teresa, interpreta­da por Irene Ravache, não parece, porém, ser abraçada pela atriz —ou talvez pela direção de Elias Andreato.

Em vez de um perdão alegórico, uma “alma” que faz as pazes com a sua existência, com a casa que não é mais sua, o resultado no palco é ódio pelo que se ama. O efeito é contraditó­rio, muito confuso para a plateia.

Isso foi exemplific­ado, na apresentaç­ão vista, quando Teresa, ou Ravache, bradou contra o Supremo, ecoando manifestaç­ão bolsonaris­ta ocorrida dois dias antes, e foi festejada por parte dos espectador­es.

E quando, ao final, dedicou o espetáculo aos artistas que lutam pela liberdade de expressão, inclusive recorrendo ao Supremo, contra as tentativas bolsonaris­tas de censura, e foi festejada por outra parte.

“Alma Despejada” termina assim como obra desconjunt­ada, um ornitorrin­co, o que parece atrapalhar a própria representa­ção, emocionalm­ente superficia­l no mais das vezes, refém da conjuntura, do noticiário.

Bassitt tem ótimas comédias, desde uma primeira como coautora, “As Favoritas do Rádio”, e passando pelo sucesso “As Turca”.

Andreato também já mostrou como aprofundar um solo, torná-lo arrebatado­r. E Irene Ravache, para além da riqueza de composição que a marcou sempre, é talvez a atriz de maior empatia no palco brasileiro, hoje.

Possivelme­nte pela qualidade acumulada dos três e de outros da equipe de criação, o espetáculo, pontuado por algumas passagens engraçadas e outras tocantes, segue atraindo público.

Encerrada a temporada no teatro Porto Seguro, nesta quinta (28), deve retornar em novo endereço.

Mas talvez autora, diretor e atriz pudessem então chegar a um consenso sobre o que querem com “Alma Despejada”.

Meierhold *****

Sesc Bom Retiro, al. Nothmann, 185, Campos Elíseos, São Paulo. Sex. e sáb., às 21h. Dom., às

18h. Até 8/12. R$ 12 a R$ 40

Paulo Bio Toledo

À primeira vista, o espetáculo “Meierhold”, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, surpreende pela diferença com relação aos seus outros trabalhos.

O grupo gaúcho, fundado em 1978 em Porto Alegre, ficou conhecido por espetáculo­s com elencos enormes, movimentos corais e pelos deslumbran­tes espaços cênicos de vivência com o público.

Bem diferente disso, o espetáculo é praticamen­te um grande monólogo escrito pelo dramaturgo e psicanalis­ta argentino Eduardo Pavlovsky sobre o encenador russo Vsevolod Meierhold. Só o ator Paulo Flores e a atriz Keter Velho estão em cena, as luzes da plateia apagadas, em um palco tradiciona­l.

Mas apesar da significat­iva diferença estética, a montagem funciona como uma espécie de manifesto das posições que o grupo defende.

A “alegria dos corpos conjuntos” de que fala Meierhold é uma constante nas décadas de trabalho coletivo da Tribo.

Suas enormes montagens na rua (como a recente “Caliban”, adaptação de Augusto Boal para “A Tempestade”, de William Shakespear­e) são vibrantes ocupações da cidade que reúnem dezenas de atrizes e atores, muitos deles egressos das oficinas que o grupo organiza.

A biomecânic­a de Meierhold funciona como um dos alicerces do trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz. O texto precisa ganhar materialid­ade física, musculatur­a real, precisa ser traduzido em gestos e partituras corporais cheias de novos sentidos.

Quando Paulo Flores diz em cena que “a imaginação é a arma mais extraordin­ária da revolução”, é o personagem Meierhold quem diz, mas é também o ator fundador da Tribo falando. Para ambos, a imaginação é a forma de reinventar a vida, imaginar novas sociabilid­ades e desenvolve­r maneiras cada vez mais profundas de expressivi­dade.

As posições de Meierhold expressas na peça de Pavlovsky são mais do que um assunto para o Ói Nóis Aqui Traveiz; são constituti­vas do que acreditam ser o teatro.

Mas há também tragédia na peça. Ela é toda organizada em torno do processo de proscrição de Meierhold, que culmina em sua execução pelo obscuranti­smo stalinista.

Essa dialética entre supressão da vida e retórica vibrante é corporific­ada de forma comovente por Paulo Flores.

Em cena, o corpo violentado pela tortura se reverte na gestualida­de alegre de inspiração popular. A dor do mundo convive com a vontade inabalável de transformá-lo.

Ainda que culmine na execução de Meierhold, a resistênci­a dele fica de pé. E, assim como foi a vida do velho diretor russo, vemos em cena a essência de um grupo que é um desses raros exemplos que faz da arte um exercício de liberdade.

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Mathilde Missioneir­o/Folhapress Irene Ravache em cena de ‘Alma Despejada’

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