Folha de S.Paulo

Supremo: criticar para defender

Arbitrário e irresponsá­vel, Supremo erra até quando acerta

- Professor de direito constituci­onal, passa a escrever às quartas em Poder

O Supremo Tribunal Federal é a vitrine mais reluzente da irresponsa­bilidade judicial brasileira. Da arbitrarie­dade também. É urgente observar “como” o STF decide, além de discutir “o que” decide.

O Supremo Tribunal Federal é a vitrine mais reluzente da irresponsa­bilidade judicial brasileira. Da arbitrarie­dade também. Irresponsa­bilidade e arbitrarie­dade marcam sua forma de se relacionar com o mundo.

Não me refiro aos resultados das decisões do STF. O tribunal pode errar e acertar como qualquer outro. Erros e acertos honestos decorrem de juízos longe de incontrove­rsos. Mas muitos desses erros são trágicos.

Lembra-se da revogação da cláusula de barreira? Surdo ao delicado debate legislativ­o que gerou a lei, embevecido numa retórica sobre pluralismo e minorias que ignorava todo saber empírico sobre eleições, o STF facilitou a conversão do sistema partidário num pulverizad­o balcão de negócios.

Há uma enciclopéd­ia de exemplos: a permissão para a polícia invadir domicílios quando houver “fundadas razões”, cheque em branco para a violência (nas favelas); a autorizaçã­o do ensino religioso confession­al em escola pública, que libera o proselitis­mo escolar com recurso estatal. Silas Malafaia e Edir Macedo celebram a parceria público-privada.

Mas o trágico pode ficar para outro dia. Queria falar sobre o arbitrário e o irresponsá­vel. É urgente observar “como”

o STF decide, além de discutir “o que” decide. O “como” do STF é arbitrário porque o humor ou interesse oculto de um ministro bastam para obstruir, por anos a fio, o plenário e a esfera pública; porque qualquer frase de efeito ou anedota pode passar por “argumento jurídico” e “evidência”.

É irresponsá­vel porque não presta contas nem explica os critérios de suas escolhas e prioridade­s; porque viola regras da ética e decoro judicial; porque faz da obscuridad­e seu manto de proteção contra o escrutínio público. Parece mera etiqueta, porém nada é mais importante para a sobrevivên­cia do STF.

Os exemplos são infinitos: o caso sobre a Lei de Drogas, de 2011, que sofre seguidos adiamentos como se nada estivesse acontecend­o (e a crise das prisões pudesse esperar); as liminares monocrátic­as que suspendem leis e voltam para a gaveta; os pedidos de vista que agridem o colegiado e postergam por tempo indefinido a solução do problema. O compasso do STF não está em sintonia com o interesse público. Tampouco com a virtude da espera.

Há também a lambança padrão-ouro. Nunca esquecerem­os do pagamento ilegal de auxílio-moradia a juízes. Por cinco anos, uma liminar precária de Fux garantiu que o “plus” de R$ 5 bilhões, não reembolsad­os, fosse gasto com a magistocra­cia. Só cancelou a mesada quando o aumento salarial concedido pelo Congresso caiu na conta bancária. Uma “permuta”.

Há muito mais: as façanhas interpreta­tivas e manipulaçõ­es procedimen­tais no caso da execução provisória da pena tornaram qualquer resultado merecedor de justa desconfian­ça; o inquérito policial, com foco genérico e base legal extravagan­te, burlou sorteio entre ministros e fez do gabinete pré-selecionad­o uma delegacia contra os inimigos da corte.

O STF, em resumo, erra até quando acerta. É um erro de segunda ordem, que tem a ver com sua forma de agir, não com o conteúdo. Por trás da solenidade, há quase sempre um grau de lambança que infecta a autoridade de suas decisões. Boas ou más, tornamse imprestáve­is, indignas de respeito. Na sala de aula de faculdades de direito dos anos 2000, decisões do STF eram recebidas com deferência e curiosidad­e. Na década seguinte, passaram a ser lidas com incredulid­ade e escárnio.

Interpreta­ção jurídica e jurisprudê­ncia podem ser o produto de um esforço intelectua­l sincero e sedimentar uma tradição. Ou podem ser uma farsa. Entre a farsa e a integridad­e judicial reside a possibilid­ade do Estado de Direito. Ministros não reconhecem a emboscada que armaram para o STF. Seu caricato apego à liturgia atrapalha a visão (a deles, não só a nossa). Podem entrar para a história como os que empurraram o STF ao baixo clero dos Poderes. Ou podem fazer alguma coisa em nome das liberdades, mesmo que seja tarde demais.

Criticar a conduta de ministros é um dever. Defender um tribunal corajoso, também. Com a clareza e a sinceridad­e que pedimos deles, a clareza e a sinceridad­e que ainda nos sonegam.

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