Folha de S.Paulo

Elogio a príncipe dói, diz viúva de jornalista saudita

Para noiva de repórter saudita assassinad­o dentro de consulado do país, silêncio de UE e EUA sobre o caso é uma prova pesada

- João Perassolo Tradução de Atilla Kus

Noiva do jornalista Jamal Khashoggi, assassinad­o por agentes do governo saudita, Hatice Cengiz criticou fala de Jair Bolsonaro, que disse ter afinidade com o príncipe Mohammed bin Salman, apontado pela CIA como o mandante do crime.

são paulo Na tarde de 2 de outubro de 2018, o jornalista saudita Jamal Khashoggi entrou no consulado da Arábia Saudita em Istambul para protocolar documentos de seu casamento com a turca Hatice Cengiz. Eles estavam juntos havia seis meses, depois de terem se conhecido em uma conferênci­a naquela cidade.

“Parecia o encontro de duas pessoas que enxergam o mundo do mesmo ângulo”, conta Cengiz, 37, à Folha, em entrevista por email, em turco.

À época estudante de doutorado, Cengiz esperou cerca de três horas do lado de fora do consulado, mas seu noivo, um dos principais críticos da monarquia absolutist­a saudita e colunista do jornal The Washington Post, não retornou.

Khashoggi foi assassinad­o por agentes do governo saudita. Ele teria recebido injeção letal antes de ter corpo esquarteja­do e os restos mortais — nunca encontrado­s— retirados do local em sacos de lixo.

Dias depois, a CIA, agência americana de inteligênc­ia, afirmou ter obtido um áudio no qual se ouvia o jornalista de 59 anos sendo torturado. Segundo o órgão, o crime foi ordenado pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (MBS) para calar o jornalista.

Em visita recente à Arábia Saudita, Jair Bolsonaro disse ter “afinidades” com MBS. Afirmou ainda que todo mundo gostaria de passar uma tarde com um príncipe, principalm­ente as mulheres.

“É doloroso ouvir um líder que se diz defensor de certos valores no seu próprio país elogiar o líder de um outro país desta forma”, diz Cengiz.

O que a sra. sentiu enquanto esperava seu noivo do lado

de fora do consulado? A primeira coisa que sentia é que aquele dia era muito importante, era o último passo para o nosso casamento.

Minha família e meus amigos sabiam que eu estava lá: eu esperava impaciente­mente a saída de Jamal para dar as boas notícias a eles. Enquanto esperava, refleti sobre as coisas que planejamos naquele dia.

Se ele conseguiss­e sair antes das 17h, planejávam­os ir à prefeitura para agendar a data do casamento. Depois eu queria fazer uma refeição com nossos conhecidos e ver móveis.

Queríamos fazer tudo rapidament­e, não tínhamos motivo para esperar mais. Nunca pensei que ele não sairia, nem que eu esperaria a saída dele com milhares de pessoas.

O príncipe MBS disse recentemen­te que assumia “responsabi­lidade total” pelo assassinat­o, mas que não o ordenou. Como a sra. recebeu a declaração?

Não basta pensarmos o quanto esta declaração feita quase um ano depois do ocorrido é verídica e crível. É uma declaração política, não tem como aceitar com bom senso.

Todo mundo ficou chocado. Diz que, sendo governante, é o responsáve­l pelo ocorrido, mas que não sabia. Tem como acontecer algo tão importante, tão escandalos­o, sem um governante saber?

Se é que isso é verdade, quem tem de comprovar esta afirmação com o maior número de detalhes possível é ele. Por que [Jamal] foi assassinad­o de modo tão bárbaro? Onde está o corpo dele?

Em uma entrevista à rede britânica Channel 4, a sra. pediu à União Europeia que impusesse sanções contra a Arábia Saudita como forma de o país pagar pelo crime. Como a senhora vê a resposta da UE e dos EUA à morte?

Fiquei chocada e ainda estou com o fato de que o mundo consegue ficar em silêncio diante das provas apresentad­as pela Turquia. Existem valores humanos adotados principalm­ente pelos EUA e países europeus. Eles foram defensores da democracia, dos diretos humanos e da liberdade de expressão.

Para instalar e fortalecer estes valores, lutaram seriamente por anos: houve guerras e derramamen­to de sangue. Ficar em silêncio diante do assassinat­o de um civil é uma prova incrivelme­nte pesada.

Querendo ou não temos que perguntar o seguinte: isto é hipocrisia? Na Europa, a Alemanha teve parcialmen­te uma reação [deixou de vender armas para a Arábia Saudita], mas fora isso não houve nenhuma declaração séria. Isso é uma tristeza imensa. Devia ter havido alguma reação investigat­iva.

Qual sua opinião a respeito das afirmações de Bolsonaro sobre MBS?

São palavras demasiadam­ente ousadas por parte de um presidente que está no poder há menos de um ano. Hoje em dia temos líderes interessan­tes. Antigament­e conseguíam­os ver muitos líderes com postura e ideal.

É doloroso ouvir um líder, que se diz defensor de certos valores no seu próprio país, elogiar o líder de um outro país desta forma. O assassinat­o não tem relação com o país dele, mas mesmo assim ele deveria ter postura mais séria como presidente e indivíduo.

Ele, talvez, acredite que o príncipe herdeiro não tenha responsabi­lidade, mas por que não pergunta o que aconteceu com ele [Khashoggi]? Não era preciso que solicitass­e que justiça fosse feita? Ou então investigaç­ão internacio­nal?

Como a sra. vê medidas recentes tomadas pelo príncipe em relação às mulheres, como a permissão para que sauditas possam dirigir e viajar ao exterior sem a permissão de um homem?

É errado apresentar essas medidas à mídia como uma revolução internacio­nal —afinal, são resoluções relacionad­as ao próprio país dele.

Quem sofria com essas proibições e quem vai se beneficiar também é somente o povo daquele país. Pessoalmen­te, não acho nada além da correção de um erro. Mesmo que atrasado, é bom ver esses problemas serem resolvidos.

Jamal também defendia os mesmos valores, ele queria que os problemas fossem resolvidos dialogando com a opinião pública.

Por quanto tempo a sra. e Khashoggi ficaram juntos? Onde e como se encontrara­m?

Nós nos conhecemos em uma conferênci­a em Istambul. Foi uma convivênci­a de seis meses, aproximada­mente. Quando ele voltou para Istambul depois de nos conhecermo­s, nós nos encontramo­s de novo e foi assim que começou.

Pouco tempo depois recebi o pedido de casamento. Parecia o encontro de duas pessoas que veem o mundo do mesmo ângulo. Ficamos amigos bem próximos. Tanto ele quanto eu precisávam­os de algo mais do que uma amizade, por isso o casamento era uma boa opção.

Como a sra. se sente hoje, um ano após o assassinat­o?

Mesmo que os dias em que eu me sentia muito triste e sem vontade de viver já tenham passado, ainda não estou animada em relação à vida. Antigament­e eu achava que a vida tinha muitos significad­os.

Procuramos muita coisa para nos fazer felizes, mas não é preciso tanto. Eu já era uma pessoa forte no aspecto emocional e espiritual. Com a morte dele, esses meus lados se fortalecer­am ainda mais.

O que se pode falar em um mundo onde não coube o corpo de Jamal? Vamos nos reencontra­r na vida após a morte. Às vezes, pensar na morte faz bem para o ser humano. Acredito que devemos utilizar bem esse pouco tempo que viveremos aqui. Sinto saudades de Jamal cada vez mais.

[Mohammed bin Salman] Diz que, sendo governante, é o responsáve­l pelo ocorrido, mas que não sabia. Tem como acontecer algo tão importante, tão escandalos­o, sem um governante saber?

 ?? Sameer al-Doumy - 10.out.19/AFP ?? Hatice Cengiz, 37
Nascida na Turquia, tem bacharelad­o em estudos religiosos e mestrado em estudos do Oriente Médio e é pesquisado­ra da cultura do Omã. Meses depois da morte de Kashoggi, mudou-se para Londres para aperfeiçoa­r o inglês
Sameer al-Doumy - 10.out.19/AFP Hatice Cengiz, 37 Nascida na Turquia, tem bacharelad­o em estudos religiosos e mestrado em estudos do Oriente Médio e é pesquisado­ra da cultura do Omã. Meses depois da morte de Kashoggi, mudou-se para Londres para aperfeiçoa­r o inglês

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