Folha de S.Paulo

Controle do DPVAT é frouxo, diz chefe de órgão regulador

Superinten­dente da Susep diz que seguro obrigatóri­o gera distorções e defende MP que o extingue

- Nicola Pamplona

rio de janeiro A superinten­dente da Susep (Superinten­dência de Seguros Privados), Solange Vieira, defende que o DPVAT, seguro obrigatóri­o para motoristas extinto pelo governo via medida provisória, não é um bom produto e gera distorções, ao funcionar como um imposto que cobra mais da população de baixa renda.

A proposta de extinção causou polêmica, já que o seguro garante indenizaçõ­es a vítimas de acidentes e ajuda a compor o orçamento do SUS (Sistema Único de Saúde), e enfrenta resistênci­a no Congresso.

Para Vieira, a cobertura médica universal e os programas sociais que não existiam quando o DPVAT foi criado substituem hoje a maior parte da cobertura do seguro.

Ela argumenta ainda que o modelo é grande fonte de fraudes, que encarece o valor dos prêmios pagos pelos motoristas, e que seguradora­s privadas poderão oferecer produtos mais baratos aos motoristas.

Vieira critica a gestão da Seguradora Líder, consórcio que administra o DPVAT, e diz esperar batalha judicial pela diferença entre o saldo de arrecadaçã­o e os compromiss­os com sinistros, que hoje é de R$ 5 bilhões —a medida provisória prevê repassar os recursos ao Tesouro.

Por que o governo decidiu extinguir o seguro DPVAT?

Não vemos no DPVAT um bom produto de seguro. Primeiro, porque parte substancia­l do prêmio vai para o SUS e para o Denatran. Mistura um produto de seguro com imposto. E aí, olhando pela ótica de imposto, é uma arrecadaçã­o péssima.

O prêmio do seguro é cobrado pelo risco, e moto tem muito mais risco o que carro, então tem seguro muito mais caro. E, historicam­ente, quem tem moto é o motorista de baixa renda.

O motoboy está pagando mais do que o dono de um carro?

Sim, mais do que o dono de um Mercedes. É péssimo misturar essa arrecadaçã­o dentro de um seguro. Em segundo lugar, para precificar o prêmio, a seguradora calcula o sinistro provável, a margem de lucro e os custos administra­tivos, de intermedia­ção financeira e intermedia­ção de corretagem. Normalment­e devolve uns 70% a 80% da arrecadaçã­o com prêmio em sinistros pagos. No DPVAT, voltam 20%, 25%, 15%, às vezes. Na melhor hipótese, 30%.

Porque 50% vão para a arrecadaçã­o de impostos, a intermedia­ção é muito cara, e a própria corrupção, que é grande no produto DPVAT, cria um gasto significat­ivo com a questão judicial. Então, as pessoas pagam e não têm muito retorno. É um produto caríssimo.

Talvez, se o motoboy tiver seguro diretament­e numa seguradora e o mercado for concorrenc­ial, ele vai ter muito mais vantagem.

Pagaria menos do que paga pelo DPVAT?

Com certeza. E tem outro problema, que é o incentivo ao mau motorista, já que todo o mundo paga igual por categoria de veículo. O DPVAT não analisa o perfil do segurado, como ocorre quando você vai fazer o seguro do carro. O cara que fica inadimplen­te, o cara que tem muitos acidentes, que dirige de forma não adequada, paga o mesmo seguro.

Quando abrirmos para o mercado, as seguradora­s vão tender a precificar por região. Regiões com histórico de muita corrupção vão ficar mais caras, porque as seguradora­s privadas vão precificar. Com isso, achamos que a própria fiscalizaç­ão das seguradora­s vai reduzir o preço do produto.

A que tipo de corrupção a sra. se refere?

Estou falando de fraudes na indenizaçã­o. Como paga para todo o mundo, mesmo em acidentes com autor não identifica­do, há um incentivo perverso: qualquer pessoa que quebrou o braço pode fazer um boletim de ocorrência e dizer que foi atropelada, ela tem direito de receber indenizaçã­o.

O controle é muito frouxo. A própria Líder tem muita dificuldad­e para controlar. Há exemplos de estados do Nordeste com pagamento de sinistro extremamen­te desproporc­ional. O Ceará ficou acima de São Paulo em sinistros de motos, o que não faz sentido, porque a frota de São Paulo é infinitame­nte maior. E a Susep não tem capacidade para esse tipo de fiscalizaç­ão, que é caso de polícia.

Não faltou debate com a sociedade?

Estamos debatendo isso desde março. Falo isso porque é quando eu cheguei, mas a sensação é que, desde 2015, o governo discute acabar com o DPVAT em razão dos escândalos que acontecera­m.

Quando a gente fechou todas as pontas técnicas, parecer jurídico, o governo achou que estava pronto para seguir. Foi anunciado por medida provisória por causa do Orçamento. O Orçamento fechava até 14 de novembro, e esse era o prazo para tomarmos uma decisão.

Eu acho que pode ter havido uma avaliação errada em Brasília sobre a repercussã­o da notícia. A gente enxerga [o DPVAT] como um tributo, e há um esforço para reduzir os tributos. Na nossa cabeça, o seguro não está desaparece­ndo, ele deixa de ser obrigatóri­o. A gente já criou aqui na Susep o produto indenizaçã­o a terceiros, e tem seguradora­s já lançando o produto, que a gente imagina que vai ser mais barato.

Por que alguém contratari­a um seguro não obrigatóri­o?

Quando você causa um dano a terceiro e a vítima entra na Justiça, ela pode ganhar uma indenizaçã­o muito maior do que ela ganharia com o DPVAT. Ele acabou sendo um incentivo perverso para a população não entrar na Justiça.

Na verdade, isso é um conceito engraçado: o seguro não é feito para proteger o terceiro, é feito para proteger quem tem que pagar a indenizaçã­o, para o patrimônio dela não ser tão afetado. Você faz um seguro de carro para proteger seu patrimônio. E a preocupaçã­o seria o motorista não ficar sem o patrimônio dele se houvesse necessidad­e de pagar uma indenizaçã­o.

Há países em que a compra de um seguro contra terceiros é obrigatóri­a. Por que não optaram por esse modelo?

Acho que isso tem que ser discutido no Congresso, que precisa avaliar quais os benefícios de colocar algo no lugar [do DPVAT]. A gente pode ajudar com os números, os benefícios, mostrar o que realmente fica descoberto [com o fim do DPVAT]. Por exemplo, indenizaçã­o para morte de pedestres representa 3% do total de sinistros. A gente acha que é pouco para fazer uma política pública.

Na nossa equipe técnica, teve até gente que era contra e gente que era a favor de colocar alguma coisa no lugar. Mas acabou prevalecen­do a ideia de que os percentuai­s que ficam descoberto­s, de morte de pedestres, são muito baixos.

A extinção do DPVAT retira recursos do SUS. Como compensar?

Essa é uma crítica infundada. Há um mínimo constituci­onal garantido para a saúde, e o gasto gira em torno desse mínimo. Então, não importa que saia uma fonte, ela tem que ser substituíd­a por outra arrecadaçã­o.

E além do mais, utilizar o dinheiro do seguro DPVAT como fonte para o SUS é péssimo, porque está fazendo com que o pobre pague mais para o SUS do que quem tem dinheiro. Mesmo que o DPVAT ficasse, eu defenderia isto com todas as forças: arrumem outras fontes, porque essa é péssima.

O que acontece com o consórcio após a extinção do DPVAT?

Ele acaba. Provavelme­nte, eles vão querer ficar com o excedente técnico. Agora, eles começaram a defender que o dinheiro é privado. Nunca defenderam que o dinheiro era privado. Tanto é que há processos na Susep em que seguradora­s que saíram do consórcio pedem para retirar patrimônio do fundo e eles alegam que não pode. Entendo que esses recursos são da população, foi a população que pagou.

Como é feita a fiscalizaç­ão das contas?

Isso é outro problema operaciona­l. A Susep não é gestora, é reguladora. Hoje temos que olhar as contas, despesas administra­tivas, contratos que a Líder faz... Entra num grau de detalhe que não somos eficientes para fazer. E consome um volume de tempo do corpo funcional da Susep, estimamos em 20% do nosso homem-hora, sendo que a Líder representa 1,9% do mercado segurador.

Tem que estudar com lupa todos os movimentos da Líder. E vou te dar um exemplo: eles queriam autorizaçã­o nossa para usar recursos desse fundo para fazer um termo de ajustament­o de conduta com o Ministério Público por má conduta deles, de dirigentes. E a gente falou: “Nem pensar, usem dos 2% de margem de lucro”.

Os custos são compatívei­s com o mercado?

Difícil analisar. Os custos jurídicos posso dizer que não são compatívei­s. Ela gastou R$ 250 milhões [em 2018, foram R$ 242 milhões]. Arrecadou R$ 2 bilhões, repassou para o SUS R$ 1 bilhão, e, do R$ 1 bilhão que ficou, gastou R$ 250 milhões com advogados.

“O DPVAT não analisa o perfil do segurado, como ocorre quando você vai fazer o seguro do carro. O cara que fica inadimplen­te, o cara que tem muitos acidentes, que dirige de forma não adequada, paga o mesmo seguro

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Aline Massuca - 6.ago.19

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