Folha de S.Paulo

A Presidente Vargas de 1984 a 2019

O povo não deve ter medo da polícia, nem a polícia deve ter medo do povo

- Elio Gaspari Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralad­a” | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso Rocha de Barros | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari, Conrado Hübner

A avenida foi a mesma. Em abril de 1984 ali aconteceu o grande comício das Diretas. Noticiou-se que a multidão passava do milhão de pessoas. Nem chegava a isso, mas deixa pra lá. A festa durou cerca de sete horas, sem um só incidente. No último domingo (24), mais de 1 milhão de cariocas festejaram o Flamengo. A festa terminou com uma pancadaria e 23 feridos nas proximidad­es do monumento ao Zumbi dos Palmares.

Não se sabe como começou a confusão, mas é elementar que a Polícia Militar não precisava ameaçar o povo com fuzis ou apontando-lhe revólveres. A primeira bomba de gás contra uma multidão parada pode ter sido um exagero. As demais, truculênci­a, sobretudo sabendo-se que na festa havia crianças. O veículo da Guarda Municipal também não precisava dar marcha a ré em alta velocidade numa pista livre. Acabou atropeland­o um guarda.

Assim como Gabigol fez a alegria dos brasileiro­s com dois gols em três minutos num final de jogo, a PM do Rio manchou a celebração no fim da festa.

O medo faz mal à alma. O povo não deve ter medo da polícia, nem a polícia deve ter medo do povo. Em 2013, quando o papa Francisco chegou ao Rio, estava protegido por um dispositiv­o teatral, com soldados e até cães farejadore­s. Na Presidente Vargas o carro do papa ficou preso no trânsito e centenas de pessoas cercaram-no, assustando muita gente que via a cena pela televisão. Só Francisco não se assustou e manteve o vidro aberto. Os agentes da Polícia Federal que escoltavam o veículo a pé mantiveram a calma, sem agredir ninguém. Também não se assustaram as pessoas que queriam vêlo, pois não é todo dia que há um papa na Presidente Vargas.

O Rio é governado por um bufão que estimula a violência policial na construção de sua própria teatralida­de. No gramado do estádio de Lima, ajoelhou-se diante de Gabigol, recebendo um olhar seco, digno dos melhores monarcas da casa de Windsor.

No dia seguinte à pancadaria do fim da festa do Flamengo, o repórter Rafael Soares revelou o áudio de um PM que revelou sua contraried­ade diante de um episódio no qual um sargento matou a tiros dois jovens que estavam numa motociclet­a.

O caso aconteceu em 2015, soldados da patrulha haviam dito ao sargento para não atirar, mas “ele estava trabalhand­o com ódio, ficava falando que ia matar, matar”. O sargento matou porque achou que a furadeira carregada por um dos jovens era uma arma.

Já houve casos em que um cidadão foi morto porque carregava um guarda-chuva e outro, uma esquadria de alumínio. O PM que matou o homem do guarda-chuva foi absolvido e o outro caso ainda está sendo investigad­o. O sargento que ficava falando em matar ainda não foi julgado.

Na tarde de domingo, depois da confusão da Presidente Vargas, uma mulher se referiu aos PMs como “esses milicianos”. É verdade que o pessoal das milícias está em alta, mas nenhuma cidade terá segurança se a sua polícia se comportar de forma a permitir tamanha confusão.

A PM é uma corporação militar que deve trabalhar com normas profission­ais e, sobretudo, de forma disciplina­da, cumprindo protocolos. O que aconteceu na Presidente Vargas não seguiu protocolo algum. Quanto à disciplina, quem sabe?

Em março do ano passado, durante a intervençã­o federal na segurança do Rio, um general foi inspeciona­r o quartel do 18º Batalhão da PM e viu-se diante de uma tropa formada por 20 homens.

À voz do comando, alguns deles não lhe deram continênci­a. Foi preciso que o coronel repetisse: “Todo mundo”. Só então foi obedecido.

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