Folha de S.Paulo

Dólar está mais barato que o governo

Afora esquisitic­e de Brasil já ter juro menor que zero, não há crise financeira

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

O preço do dólar é um fenômeno “pop” e popular. O povo diz que daqui a pouco o dólar vai poder pegar ônibus em São Paulo, onde a passagem custa R$ 4,30. Apesar da algazarra e queixas de financista­s que perderam dinheiro, aconteceu algo de extraordin­ário no mercado ou na economia?

Na conversa com gente do mercado, ninguém conta nada de excepciona­l, pelo menos a este jornalista.

O que de mais divertido que se vê por estes dias é que o Brasil agora também já tem taxas de juros negativas, “coisa de Primeiro Mundo”, vejam só. Desde o final da semana passada, o governo paga menos do que zero para quem se dispuser a emprestar dinheiro até 15 agosto de 2020 (comprando NTN-B, o título conhecido como “IPCA mais juros” no Tesouro Direto). Isto é, cobra de quem lhe emprestar algum.

Afora essa graça episódica, talvez uma anomalia técnica, nada muito mais de esquisito. De mais notável, apenas um repiquezin­ho da expectativ­a de inflação para 12 meses e um cadinho de alta de juros perceptíve­l apenas para quem negocia zilhões no mercado.

O valor do real flutua de acordo com idas e vindas idiossincr­áticas do dinheiro grosso do mundo. Flutua mais ou menos a depender da diferença da taxa de juros doméstica em relação à americana e do nível de risco percebido de aplicar dinheiro por aqui. O preço relativo das exportaçõe­s brasileira­s (termos de troca) e a perspectiv­a de cresciment­o acabam por explicar o movimento mais geral do câmbio.

Desvaloriz­ações grandes e súbitas do real podem provocar acidentes, decerto, em particular se o povo dos mercados fez brincadeir­inhas financeira­s gulosas, como em 20082009, com derivativo­s idiotas de ganancioso­s aqui no Brasil, o que provocou até quebra de empresas e bancos, vários deles salvos pelo governo de Lula da Silva, aliás.

Uma desvaloriz­ação grande pode também desanimar importaçõe­s de máquinas e equipament­os, a princípio baqueando o investimen­to. Em certos contextos, se duradoura, pode fazer com que a inflação mude de nível.

Alguém pode dizer, sem mais, que tais fenômenos estejam ocorrendo?

A desvaloriz­ação grande pode ser sintoma agudo de doença crônica da economia ou de colapso feio na finança mundial. Mas nem a desvaloriz­ação nominal foi assim tão grande nem é sintoma de doença nova, mas de uma mutação possivelme­nte duradoura e paulatina (taxas de juros mais baixas associadas a gasto mais controlado do governo).

Juntem-se juro baixo, perspectiv­a de cresciment­o baixo e incerteza, agravada pelo comportame­nto entre errático e lunático do governo, e a gente pode dizer, como um colega aqui desta Folha, sarcástico: “Você acha muito? Olha pela janela, anda pela rua. O dólar ainda está barato”.

Sim, o noticiário econômico tende a ser contaminad­o pelas preocupaçõ­es dos financista­s, seus porta-vozes e operadores. Além de muita vez serem mais realistas do que seus reis, têm

preocupaçõ­es e interesses que não coincidem regularmen­te com o interesse geral.

Mais preocupant­e, por ora, é ver que o salário médio não cresce desde abril (em termos anuais), que a taxa de investimen­to cresce a míseros 3% ao ano (dado preliminar do Ipea) e o PIB ainda anda ao ritmo de 1% ao ano.

Ainda mais preocupant­e é ver que o governo quase inteiro se dedica a jogar o país no tumulto, agora com ameaças cada vez mais frequentes de baixar decretos ditatoriai­s e ameaçar com tiros quem venha a se manifestar nas ruas contra essas misérias e violências todas.

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