Folha de S.Paulo

Romance é datado, mas inova ao expor a brutalidad­e da escravidão no Brasil

- Itamar Vieira Junior

Fantina: Cenas da Escravidão **** *

Autor: F.C. Duarte Badaró.

Ed. Chão. R$ 49,00 (192 págs.)

Ainda hoje o discurso do escritor Luiz Ruffato, na Feira do Livro de Frankfurt de 2013, desperta sentimento­s ambíguos. No rol de reflexões sobre o país, destaca-se a do mito da democracia racial brasileira: a de que a colonizaçã­o não promoveu a dizimação da população local, mas a “assimilaçã­o” dos autóctones.

Para o autor, esse discurso serve para escamotear a brutalidad­e de uma colonizaçã­o baseada no estupro. A população mestiça teve sua origem a partir do cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas, africanas e afro-americanas, ou seja, a tal assimilaçã­o se deu pela violação de colonizado­res brancos.

O romance “Fantina: Cenas da Escravidão”, de F. C. Duarte Badaró, publicado em 1881 —e mais recentemen­te pela Chão Editora—, é um exemplo do que Ruffato abordou em seu discurso.

Lançada quando o Brasil vivia uma campanha pela abolição da escravatur­a, a narrativa gira em torno de Fantina, uma escravizad­a doméstica que vive numa fazenda no interior do país.

A fazenda é propriedad­e de D. Luzia, uma mulher cobiçada por dois homens —Zé de

Deus, proprietár­io de terras e trabalhado­res, e Frederico, a quem se encontra prometida para casamento. Este é um bon vivant que, acolhido na sede da fazenda, aos poucos revela seu passatempo predileto: “deflorar” jovens mulheres escravizad­as.

É assim que Fantina, a jovem criada de 18 anos e “cabelos de caracóis”, se vê enredada num drama que retrata o estupro como arma de um poderoso domínio servil.

A história traz ecos do romance “A Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães, publicado seis anos antes. O próprio Guimarães assina o prefácio ao livro de Badaró.

Assim como Isaura, Fantina é uma mestiça negra de pele clara, que no racismo à moda brasileira costumava receber alguma compaixão da sociedade. Ressalta-se ainda a escolha do nome da protagonis­ta, Fantina, possivelme­nte inspirada em Fantine, de “Os Miseráveis”, obra de Victor Hugo publicada na França em 1862.

Com menos de cem páginas —há um extenso posfácio do professor Sidney Chalhoub, da Universida­de Harvard, que ilumina aspectos estéticos e contextuai­s da obra— o romance prescinde da erudição de alguns textos da época, o que lhe confere uma leitura ágil, facilitada também pela opção que o autor fez por capítulos curtos e enxutos.

Talvez a pequena extensão da obra, aliada à inexperiên­cia do autor, não lhe tenha permitido desenvolve­r suas personagen­s de forma a expor suas complexida­des. Há também demasiado uso de adjetivos, comum às obras da época, mas não muito bem visto nos textos contemporâ­neos.

O próprio narrador, embora sensível ao suplício de Fantina, reproduz preconceit­os em sua escrita, utilizando termos que seriam inaceitáve­is para um autor atual.

Um dos muitos exemplos é quando diz que a personagem-título é “já mulatinha de 18 anos inflamatór­ios” ou ainda “produto de duas raças viris”. O autor também a caracteriz­a com os recorrente­s estereótip­os atribuídos às mulheres negras, reificando uma visão sexualizad­a que se tornou comum às personagen­s afro-brasileira­s.

Ainda assim, ao ler o romance como uma obra datada, é possível se surpreende­r com temas pouco abordados na literatura do período, como o estupro, e uma oposição à ideia, ainda vigente, de que o sistema escravagis­ta foi aceito de forma pacífica pelos escravizad­os. Uma das personagen­s secundária­s, Rosa, mostrará ao leitor as estratégia­s de sobrevivên­cia comuns aos cativos.

Mesmo com as inconsistê­ncias apontadas, “Fantina: Cenas da Escravidão” é um romance que inova pela abordagem e expõe, sem concessões, a brutalidad­e da colonizaçã­o e da escravidão, temas que continuam a marcar o país dos nossos dias.

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Reprodução ‘Aplicação do Castigo do Açoite’, do francês Jean-Baptiste Debret

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