Preso sem prova e sem nenhum tostão
Excesso de impunidade e de severidade convivem no sistema penal do país
O que me chamou atenção, na capa da Folha nesta segundafeira (25), foi o nome do entrevistado. Sidney Silvestre? Não conhecia ninguém chamado assim, e que valesse uma entrevista de página inteira no jornal. Seria o Edney Silvestre? Não, não era.
Sidney Silvestre Vieira, de 31 anos, trabalha como cabeleireiro em Embu das Artes. Conta que passou um ano e quatro meses preso, sem nenhuma condenação.
Não havia provas contra ele, no caso da morte do professor aposentado Miguel Elias. Um suspeito, interrogado pela polícia, citou o nome “Sidney”, mas depois recuou do depoimento.
Na audiência, policiais pediram para falar: estavam convictos de que Sidney Silvestre não tinha envolvimento no assassinato. O suspeito que testemunhara contra ele fez o mesmo pedido.
Não adiantou.
Só agora a prisão foi revogada; o processo continua, para que se verifique afinal a verdade (ou não) do que conta Sidney. Mas ele ficará livre enquanto sua culpa não for comprovada.
Faça-se agora uma mudança de cena. No Supremo Tribunal Federal, mudou-se um entendimento que valeu durante alguns anos —de 2016 até o começo deste mês.
A discussão correu em torno de um ponto muito claro da Constituição: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Por um tempo, a maioria dos ministros do Supremo entendeu que não era preciso que se esgotassem todos os recursos à disposição do réu para mandálo à cadeia. Bastava a condenação em segunda instância.
A tese fazia sentido, quando se leva em conta a quantidade de exemplos —sempre citados pelo ministro Luís Roberto Barroso— de figurões condenadíssimos que conseguem adiar a execução da pena, graças a infinitas manobras judiciais.
Mas o texto da Constituição era bem claro —e agora o Supremo Tribunal Federal votou pelo retorno ao sistema anterior. Só fica preso, mesmo, quem tiver a culpa estabelecida depois de acabados todos os recursos.
Ou será que não? O problema é que os fatos, no Brasil, não são os mesmos se os vemos de baixo ou se os vemos de cima.
Olhando para baixo, a prisão “sem trânsito em julgado” é a coisa mais comum do mundo, e existe sem depender de nenhuma interpretação do STF.
É o que não se cansa de afirmar outro ministro, Gilmar Mendes, sempre visto com menos simpatia do que seu colega Luís Roberto Barroso.
O caso de Sidney Silvestre é apenas um entre incontáveis outros. A população de presos no Brasil é de mais de 800 mil pessoas. Cerca de 40% estão na cadeia sem terem sido condenados.
Claro que é preciso juiz, promotor e advogado para isso acontecer. Decreta-se prisão “temporária” quando o suspeito não tem domicílio fixo ou quando alguma prova foi levantada contra ele; o prazo varia. Há prisão “preventiva”, sem prazo, para quem pode atrapalhar a investigação, fugir ou continuar cometendo crimes.
Como ficamos? Na prática, há excesso de impunidade e excesso de severidade ao mesmo tempo.
Obviamente, a impunidade favorece quem tem bons advogados. Também obviamente, a cadeia serve para apodrecerem milhares de suspeitos sem culpa e sem dinheiro.
Não é só um caso de injustiça social.
Resulta disso uma consequência política da maior gravidade. A Constituição e os direitos humanos viram tema de ricos. E os pobres, a menos que presos injustamente, acabam sem reconhecer o que seria um instrumento básico da liberdade e da civilização.
Tenta-se agora reviver a condenação em segunda instância através de emenda constitucional, impedindo que prevaleça o novo entendimento do Supremo. Mudanças no processo penal, com novas regras para a prescrição, talvez fossem uma resposta menos arriscada.
Entre as inúmeras irresponsabilidades do PT, destaca-se a sua inércia para cuidar da segurança pública. Bancadas da bala e bolsonaristas não surgiram por acaso nem surgiram ontem.
A desigualdade não é só uma questão de renda —depende de como cidadãos, juízes e policiais entendem a aplicação da lei, e de um acesso bem distribuído a coisas imateriais como liberdade e segurança.
Como diria o atual presidente, há um lado “cultural” nisso aí. Mas culturas podem mudar —a menos que se queira continuar na Idade da Pedra.