Governo dá guinada conservadora na Cultura
Trocas incluem o comando da Secretaria do Audiovisual, da Fundação Palmares, da área responsável pela Rouanet e cargos na Ancine
Em reforma para incluir nomes mais à direita, a gestão Bolsonaro anunciou trocas em seis cargos na subpasta da Cultura. O mais importante deles, a secretaria do Audiovisual, ficará com Katiane Gouvêa, membro da Cúpula Conservadora das Américas e sem elo com o setor. A nomeação deve abrir caminho para religiosos dentro do órgão.
rio de janeiro e são paulo Bolsonaro tem uma nova secretária do Audiovisual. É Katiane de Fátima Gouvêa, membro da Cúpula Conservadora das Américas, que realizou sua primeira conferência em dezembro, ciceroneada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
Sua nomeação faz parte de uma mudança volumosa no quadro da cultura, iniciada semanas após Roberto Alvim assumir a subpasta, hoje subordinada ao Ministério do Turismo. Além do de Gouvêa, foram publicados no Diário Oficial desta quarta (27) outros cinco nomes para cargos na secretaria. Alguns desses novos integrantes já deram declarações controversas sobre a área da cultura.
Chegam ao governo secretários responsáveis pela promoção de diversidade sexual, de fomento e incentivo à cultura (à frente da Lei Rouanet) e da Fundação Palmares.
Alvim diz que só comentará as nomeações quando elas “forem perpetradas”, o que deve acontecer, segundo ele, até segunda (2).
O jornalista Sérgio Nascimento de Camargo foi escolhido como o novo presidente da Fundação Palmares, órgão responsável por promover a cultura de matriz africana, ocupando o lugar de Vanderlei Lourenço, que havia sido nomeado em abril deste ano.
Em seu perfil no Facebook, Camargo se define como “negro de direita, contrário ao vitimismo e ao politicamente correto”. Ele já afirmou que o Dia da Consciência Negra é “uma vergonha e precisa ser combatido” e que cotas raciais “são mais do que um absurdo”.
Já Camilo Calandreli substitui o administrador José Paulo Soares Martins, que havia integrado o extinto Ministério da Cultura no governo de Michel Temer, à frente da Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura. O órgão formula as diretrizes gerais dos mecanismos de fomento, entre eles, a Lei Rouanet.
Oriundo da música clássica, área em que atua como professor e cantor de ópera, Calandreli é um dos fundadores do Simpósio Nacional Conservador de Ribeirão Preto. Em seu perfil no Facebook, compartilha memes que exaltam o presidente Jair Bolsonaro.
Katiane substituirá Ricardo Rihan, que ficou quatro meses no cargo. À frente da Secretaria de Cultura desde o último dia 7, Alvim não era afeito ao ex-titular do posto, visto como mais moderado se comparado ao grupo conservador e de religiosos que pressionam Bolsonaro por cargos na cultura.
A renovação no quadro da subpasta acontece simultaneamente a uma outra série de nomeações na Agência Nacional do Cinema, a Ancine. Desde o último dia 19, ao menos quatro profissionais foram contratados para a entidade.
Nos corredores da Secretaria Especial de Cultura, a leitura que se faz sobre a indicação de Gouvêa é a de que ela teria um papel fundamental na renovação do quadro, abrindo espaço para religiosos.
Há pelo menos cinco meses, Gouvêa vem liderando um movimento de aproximação entre os integrantes da Cúpula Conservadora e o governo. Em junho, um texto publicado no sitedaSecretariaEspecialdeCultura —antes de a subpasta migrar do Ministério da Cidadania para o de Turismo—, afirma que Gouvêa participou de umareuniãocomOsmarTerra.
O mesmo texto diz que outros integrantes do grupo estiveram no encontro. Entre eles, Cristian Derosa, colunista do site Estudos Nacionais, que nega sua participação na cúpula mas se diz favorável à implementação de “filtros” nos conteúdos dos filmes patrocinados pela Ancine —ideia que Bolsonaro já havia defendido.
Ao longo de dez meses, o governo Bolsonaro teve três secretários do Audiovisual. Mas Katiane Gouvêa tem uma singularidade: é a primeira que não tem nem sequer a mais remota ligação com cinema ou TV. Sua principal credencial é o envolvimento com a Cúpula Conservadora das Américas, organização que vem ganhando espaço no governo.
As principais funções da Secretaria do Audiovisual, a SAv, são cuidar da formação dos profissionais, da regionalização do fomento, da democratização do acesso e da preservação do conteúdo brasileiro. A SAv é também responsável por diversos editais de fomento à produção.
O primeiro ocupante do cargo, nomeado em fevereiro, foi o diretor e roteirista Pedro Peixoto, indicado pelo deputado Alexandre Frota (PSDB-SP). Peixoto é autor de uma biografia de Frota.
Quatro meses depois, surgiria a especulação em torno do apresentador e produtor Edilásio Barra, que acabou indo para a Ancine. O substituto de Peixoto, Ricardo Rihan, que agora caiu, é produtor de cinema há 20 anos e se definia como liberal de direita.
Nesses meses todos, Katiane, apesar de neófita no setor, já vinha tratando das questões do audiovisual em alguns gabinetes. Ainda no primeiro semestre, pediu audiências na Ancine e saiu de lá convencida de que todos ali eram comunistas.
Sua chegada à secretaria, não por acaso, é vista como mais uma ameaça à agência, que vivencia uma sucessão de crises e segue parada.
Desde que o tripé institucional do cinema brasileiro foi estabelecido, em 2001, Ancine e Secretaria do Audiovisual, apesar de terem as competências bem estabelecidas por lei, passaram por momentos de sobreposição. Ou melhor: por momentos nos quais a secretaria procurou adequar a Ancine aos propósitos dos ministros da Cultura.
Não é difícil imaginar que isso vá acontecer agora, até porque o secretário de Cultura, Roberto Alvim, nomeado no último dia 7, já convocou artistas conservadores para uma “guerra cultural” e não disfarça o seu impulso messiânico.
Os movimentos de ocupação da Ancine já se iniciaram, inclusive. Recentemente, foram nomeados três superintendentes, um chefe de gabinete e um assessor de diretoria que, assim como Katiane, não têm ligação com o audiovisual e são indicações políticas.
Cabe lembrar que a Ancine, que funciona com uma diretoria colegiada formada por quatro diretores, tem hoje um só diretor —de fevereiro até aqui, três deles saíram, por diferentes razões. Ou seja, há três lugares estratégicos vagos. A julgar pelo ímpeto de Alvim para exonerar e nomear, é bem possível que agora saiam as indicações. Mas, no caso de diretores de agência, os indicados têm de ser sabatinados no Senado.
Tendo em vista que tanto a Secretaria do Audiovisual quanto a Ancine têm certos amparos institucionais, a pergunta que se tenta responder é: até onde os recémchegados podem ir?
A definição de editais temáticos, o estabelecimento de novos critérios de avaliação de projetos e a formação de comissões de seleção de perfil ultraconservador são algumas das medidas possíveis.
Tudo isso pode, ao mesmo tempo, levar a uma judicialização do campo audiovisual.
Cabe lembrar que o cancelamento de um edital voltado à diversidade foi considerado ilegal pelo Ministério Público Federal e pelo Tribunal Regional Federal. Há, além disso, duas instâncias que têm voz: o Conselho Superior de Cinema e o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual.
O quanto essas instâncias legais e o próprio Congresso Nacional serão capazes de enfrentar a “missão cristã” vocalizada por Alvim só o tempo dirá.
Mas o fato é que o grupo que, meses atrás, em audiência com o ministro da Cidadania, Osmar Terra, defendeu o “fomento à produção de conteúdos que destaquem símbolos nacionais, o patriotismo e a preservação da família”, não precisa mais pedir reunião. Eles agora são os donos da agenda.