Folha de S.Paulo

Acender a luz

Livro de Rodrigo Janot expõe atos falhos e omissões

- Alberto Zacharias Toron Advogado, doutor em direito pela USP, professor de processo penal da Faap e autor do livro ‘Habeas Corpus e o Controle do Devido Processo Legal’ (Revista dos Tribunais)

Com a sua conhecida elegância, o jornalista Elio Gaspari afirmou nesta Folha que o livro de Rodrigo Janot “deseduca, desinforma e ofende o vernáculo”. É verdade.

O livro surpreende. E não me refiro a revelações, no mínimo inusitadas, como a de que lia relatórios policiais, inquéritos e processos de traz para frente, invertendo a esperada lógica de se conhecer os fatos. A obra fala mais pelas suas omissões e atos falhos do que pelo que revela, entre constrange­dores autoelogio­s pessoais: “Eu só não diria que éramos mais populares que Jesus Cristo porque não quero cometer o mesmo erro de um dos Beatles...”

A convenient­e seletivida­de da memória e a contínua negação de fatos concretos completam o livro. O exprocurad­or-geral se autoelogia por ter pedido a prisão de líderes do antigo PMDB em iniciativa de grande impacto nacional. Mas omite que ele mesmo voltou atrás pedindo arquivamen­to da ação que havia apresentad­o, reconhecen­do que não havia base para a sua proposição.

Diz que o Ministério Público Federal não participou da gravação feita por Bernardo Cerveró quando o próprio pai dele, Nestor Cerveró, já informou, em testemunho tornado público, que a gravação foi orientada por procurador. Acredita nas palavras de delatores quando lhe convém, mas as considerav­a “imaginativ­as“quando não era o caso.

Insiste em afirmar que Marcelo Miller estava de férias contínuas no período de 23 de fevereiro a 4 de abril, quando hoje se sabe que não é verdade, e não explica o porquê. Contrarian­do o histórico de suas ações na PGR, não recorreu da decisão que negou o pedido de prisão do ex-procurador.

No entanto, são outras passagens que, pela sua gravidade, merecem maior atenção. O ex-PGR revela, por exemplo, trocas de informaçõe­s com a Suíça e o Panamá, antes que estas fossem formalizad­as. Imaginar que uma das maiores autoridade­s do país possa ter agido fora dos canais oficiais é desconcert­ante.

Em outro trecho, o livro traz o que todo mundo já sabia: vazamentos selecionad­os eram estimulado­s. Assim, profission­ais da imprensa que julgavam estar exercendo o seu ofício de informar a população estavam, na verdade, sendo usados por investigad­ores que escolhiam previament­e, de acordo com sua conveniênc­ia, não apenas o que e quando vazar, mas, sobretudo, a narrativa que deveria embalar esses vazamentos, sustentado­s, muitas vezes, apenas nas palavras das fontes.

Já para quem acompanha de perto os bastidores da delação da J&F, um registro traz à tona a peça que faltava para demonstrar como procedimen­tos legais foram manipulado­s.

Graças a ele, sabe-se agora que foi o ex-PGR quem levou pessoalmen­te as gravações de Michel Temer e Aécio Neves ao ministro Edson Fachin antes do dia 7 de abril, data simulada pela PGR como de recebiment­o destas em documentos oficiais.

Para fazer com que as cautelares referentes ao deputado Aécio Neves fossem relatadas por Fachin, de sua escolha pessoal, o ex-PGR não hesitou sequer em induzir o ministro a erro, forjando uma prevenção inexistent­e das cautelares envolvendo o deputado, com casos anteriores sob os cuidados do ministro.

A manobra do ex-procurador-geral impediu que essas cautelares, como previsto, tivessem entrada sigilosa formal no tribunal e fossem encaminhad­as, via sorteio, a um ministro relator, violando o regimento interno, a resolução 579 do Supremo e o princípio do juiz natural.

Apenas 50 dias depois das graves medidas solicitada­s pelo ex-PGR terem sido decretadas pelo ministro Fachin, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que não existia a prevenção alegada, e o procedimen­to foi encaminhad­o para sorteio interno.

Manipulaçã­o do sistema judicial, negociaçõe­s extraofici­ais, vazamentos orientados. Some-se a isso informaçõe­s recentes que demonstram a atuação pessoal do ex-procurador para impedir julgamento de habeas corpus, mantendo presos possíveis delatores com o objetivo de aumentar a pressão por delações.

O livro do ex-PGR não merece ser relegado à indiferenç­a. Embora “deseduque, desinforme e ofenda o vernáculo”, é também fresta aberta para que se possa começar a acender a luz sobre essa triste quadra do Estado de Direito no país.

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