Folha de S.Paulo

Liberalism­o é via estreita no Brasil

Fala de Guedes sobre AI-5 não pode vir de quem ocupa posição de Estado

- Fernando Schüler

O ministro Paulo Guedes misturou as palavras “AI-5”, “Lula”, “povo na rua” em sua entrevista de Washington. É evidente que nada disso faz sentido. Não há ninguém quebrando nada pelas ruas, a retórica de Lula serve para animar sua base militante, o país tem uma pauta imensa de reformas a fazer no Congresso e há sinais claros de retomada econômica.

A fala de Guedes, como seria previsível, serviu como prato cheio a nossa algazarra digital. Qualquer fala sugerindo, ou aventando a hipótese absurda de um ato de exceção no Brasil deve ser repudiada como uma irresponsa­bilidade. Há menções desse tipo todos os dias, aos milhares, nas redes sociais. Mas elas não podem vir de quem ocupa posições de Estado.

Diria que a leitura política do país feita por Guedes é equivocada (não há uma “ameaça chilena” no Brasil), assim como sua menção a uma época que o país soube superar, a duras penas. Além disso, há o dito popular: não se fala em corda em casa de enforcado.

A fala de Guedes incomoda por uma razão peculiar: nosso ministro é um liberal e comanda a economia em um governo que não faz mistério de suas simpatias pelo ciclo autoritári­o na América Latina. Imagino que tenha sido isso que levou um analista a sugerir que Guedes se mostrava cada vez mais como um pinochesti­sta.

Descontand­o o óbvio exagero, há um ponto interessan­te aí. Pinochesti­sta é alguém que preza a liberdade de mercado, mas dispensa a democracia política. Por estranho que pareça, há muita gente que simpatiza, nos dias de hoje, com variantes dessa tese. Ela foi alimentada, à direita e à esquerda, pelo sucesso econômico do modelo chinês. Jason Brennan e sua epistocrac­ia, isto é, o governo dos que “sabem”, em vez de um sistema refém da irracional­idade da multidão, navegam por essas águas.

A tese é estranha à grande tradição liberal, por muitas razões. A ideia de que um ditador benevolent­e e racional serviria para garantir nossos direitos e uma vida tranquila no mercado não responde a uma questão muito simples: como fazemos para mandar embora o ditador quando ele perde sua racionalid­ade e benevolênc­ia?

James Madison matou essa charada à época da formação americana. É porque os homens não são anjos que precisamos de uma engenharia complexa de freios e contrapeso­s para garantir nossos direitos. O Brasil, entre idas e vindas, vem construind­o uma engenharia desse tipo. Ela ainda é tremendame­nte falha, mas (como diz o próprio ministro Guedes) somos uma “democracia vibrante”, e seria muita burrice abrir mão do caminho que já percorremo­s.

Há uma razão mais profunda que torna o liberalism­o e a democracia irmãos siameses. O exercício da palavra e da política expressam, em si mesmos, um direito individual. Vale o mesmo para as demais esferas da liberdade humana. Não faz sentido determinar (a partir de que lugar?) que a liberdade de empreender é mais importante do que a liberdade de opinar, criar uma obra de arte ou professar esta ou aquela religião.

É isto, no fundo, que define uma sociedade liberal: um delicado respeito aos infinitos modos de realização humana. Isso inclui o cidadão que deseja “mudar o mundo”, a jovem empreended­ora da pet shop e um casal, não importa o sexo, que deseja criar os filhos de uma certa maneira. Infinitos modos de vida capazes de se expressar sem que as pessoas se matem pelas ruas.

É por ai que dançam tanto a esquerda como certo conservado­rismo de costumes, muito em moda por aqui. Este último tem um problema com a ideia de “diversidad­e”.

Bolsonaro expressa isso quando sugere que o governo deveria financiar apenas filmes compatívei­s com nossa “tradição judaico-cristã”.

À esquerda, o problema congênito é aquele que John Tomasi chama de “excepciona­lismo econômico”. Em resumo: liberdades são importante­s, desde que elas não envolvam a palavrinha “mercado”. Tipo particular de conservado­rismo que põe à sombra uma esfera “não relevante” da liberdade individual. E não me refiro às distopias socialista­s, que seriam um alvo fácil, mas ao que se vê no dia a dia do debate público e nas votações no Congresso.

A verdade é que o velho e bom liberalism­o é uma via estreita no Brasil. Sua recusa simultânea do autoritari­smo político, do mandonismo econômico e da tutela do Estado sobre a cultura faz de seus simpatizan­tes aves raras por estes trópicos. Se somarmos a isso certa disposição para o diálogo e aversão à gritaria política, a imagem que surge é a de um quase deserto.

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