Folha de S.Paulo

Hong Kong tem maior ‘ato do almoço’ desde vitória da oposição nas eleições

Dois braços levantados com mão espalmada marcam início de protesto, que reúne centenas

- Igor Gielow

hong kong Dois manifestan­tes com braços levantados e mãos espalmadas, lembrando as cinco demandas dos atos contrários ao governo de Hong Kong. Foi o que bastou para a realização do maior “protesto da hora do almoço” no território desde que a oposição venceu as eleições distritais no domingo (24).

Pouco antes das 13h (2h em Brasília) desta quarta (27), a esquina da rua Pedder e da elegante avenida Des Vouex, no coração do centro financeiro de Hong Kong, começou a receber um grupo de jornalista­s.

Avisados por grupos de WhatsApp, eles se prepararam para um possível ato. Às 13h em ponto, dois homens parados discretame­nte junto à loja da Louis Vuitton na esquina levantaram o braço direito e começaram a gritar “Liberdade para Hong Kong”, em cantonês e em inglês.

Aos poucos, ficou clara a ideia da dita Revolução Água, dado o caráter fluido das manifestaç­ões, inspirado no lema “seja água” do herói local do kung fu Bruce Lee (1940-73).

Se claramente não foram espontânea­s, dado que os repórteres sabiam que elas ocorreriam, o caldo engrossou de forma natural, numa espécie de arrastão de Carnaval.

Com massa crítica de cerca de 20 pessoas, o grupo começou a atravessar a avenida e se dirigiu ao conjunto de passarelas cobertas que interliga a estação Central do metrô, a Hong Kong do sistema de trens e centros empresaria­is.

No espaço apertado, transeunte­s paravam, gritavam palavras de ordem e saíam. “Apoio eles, a eleição foi boa, mas não é suficiente. Precisamos das cinco demandas atendidas”, disse Nancy, honcongues­a que não deu o sobrenome antes de sair, apressada.

Fora a demanda da retirada da lei que previa a extradição de acusados de certos crimes para a China continenta­l —já atendida—, as outras exigências são voto universal para o Legislativ­o e o Executivo, inquérito sobre a brutalidad­e policial contra os protestos iniciados em junho, anistia para os mais de 4.000 presos desde então e o cancelamen­to da acusação de baderneiro­s (que dá até 10 anos de cadeia).

Algumas das pessoas que passaram pelo local se irritaram com a confusão. “Eu quero chegar ao trabalho”, disse o especialis­ta em computação Ben Sterling, 30, um britânico filho de pai honconguês que mora há 20 anos na cidade.

Já alguns turistas ocidentais se divertiam, fazendo selfies com os ativistas—caso também de alguns jornalista­s não muito ciosos do conceito de imparciali­dade da profissão.

Entre palavras de ordem pedindo liberdade, volta e meia surgia o hino oficioso da revolta de 2019, “Glória a Hong Kong”. Composta por um ativista identifica­do como Thomas em uma rede social, em setembro, a música é acompanhad­a por celulares com suas lanternas acesas.

O anonimato é central, dado o temor que de uma repressão comandada por Pequim, que possui um dos mais amplos sistemas de vigilância por reconhecim­ento facial do mundo —que não é onipresent­e em Hong Kong como nas outras grandes cidades chinesas.

O “manifestan­te da hora do almoço” típico é Liu. Com um terno azul marinho e camisa branca, cabelos espetados, ele disse ter ido comer rapidament­e perto da praça Exchange para poder se unir ao ato, sobre o qual ficou sabendo pelo aplicativo Telegram.

Na passarela, sacou uma máscara cirúrgica. Apesar da liberação pela mais alta corte local, Pequim afirma que cobrir o rosto em atos segue proibido em Hong Kong. Ninguém estava lá para verificar.

O único momento de tensão ocorreu quando um ativista favorável ao controle de Pequim sobre Hong Kong, na prática o alvo principal das críticas dos atos, apareceu.

Figura peculiar, vestido com armadura negra, rabo de cavalo e incontrolá­vel tendência de falar olhando para o celular que segurava com um pau de selfie, ele veio munido de uma caixa de som e começou a pedir respeito à gestão chinesa.

Foi vaiado, mas a presença de jornalista­s parece ter dissuadido os manifestan­tes mais esquentado­s. “Se eles querem liberdade de expressão, têm de me aguentar”, falou ao microfone, antes de escolher o melhor ângulo para continuar seu discurso para o celular.

Apenas uma política apareceu, Audrey Leu, ex-líder do Partido Cívico, bastante moderado. “Estou aqui para mostrar apoio à continuida­de dos protestos. Vencer as eleições foi só um começo”, disse ela.

A ocupação das passarelas visava evitar repressão a policial, disse Wan, que parecia organizar gritos de guerra e posicionam­ento de rotas de fuga. Parecia, porque ele dizia estar só de passagem.

Seja como for, a polícia não apareceu. Ela surgiu em outro ato do outro lado da baía, em Kowloon, na porção continenta­l de Hong Kong. Lá, em dois pontos separados, cerca de 300 pessoas também protestara­m pelo cumpriment­o das demandas pelo governo.

Policiais da tropa de choque fecharam ruas e dispersara­m os manifestan­tes, mas não houve uso de balas de borracha ou gás lacrimogên­eo.

A vitória nas eleições locais apresenta um desafio ao governo da executiva-chefe Carrie Lam, que obedece a Pequim. Se apertar a repressão a atos pontuais, poderá estimular manifestaç­ões maiores. Se nada fizer, talvez elas cresçam naturalmen­te, como ocorreu ao longo do ano. Daí as especulaçõ­es sobre quando ela enfim irá reagir.

Ainda há a questão do cerco à Universida­de Politécnic­a, que teoricamen­te acabou na terça, mas que ainda não foi levantado porque a polícia quer ter certeza de que não há mais estudantes rebeldes amotinados no campus.

Segundo o South China Morning Post, a polícia quer ordem judicial para fazer a varredura do campus, mas a instituiçã­o resiste. Na terça, ela havia anunciado o fim da crise, iniciada com violento confronto no dia 17, ao localizar apenas uma moça nos prédios do local. E há desafios novos, como um ato maior previsto para a noite da quinta (28).

Com uma salva de palmas, o ato acabou às 14h em ponto, e a maré de manifestan­tes esvaiu-se pelas saídas laterais das passarelas. Como a água que tanto prezam.

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Fotos Igor Gielow/ Folhapress Às 13h em ponto, ativistas de Hong Kong iniciam ‘protesto da hora do almoço’, que dura até as 14h

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