Folha de S.Paulo

Economista de esquerda se projeta com nova visão sobre capitalism­o

- Katy Lederer Tradução de Paulo Migliacci

nova york | the new york times Mariana Mazzucato estava com muito frio. Do lado de fora, era um dia úmido de final de setembro em Manhattan, mas, do lado de dentro —em um espaço para conferênci­as da Universida­de Columbia, repleto de cientistas, acadêmicos e empresário­s que assessoram a ONU sobre sustentabi­lidade—, o ar-condiciona­do funcionava a toda força.

Para uma sala lotada de especialis­tas que discutiam os problemas sociais e ambientais mais urgentes do planeta, isso não só era desconfort­ável como contrariav­a a mensagem pretendida. Não importa como estivessem vestidas —ternos, saris, lenços de cabeça—, as pessoas pareciam encolhidas, resguardad­as.

Durante uma pausa, Mazzucato enviou um assistente para pedir que o ar fosse desligado. Como é que mudaremos alguma coisa, indagou em voz alta, “se não nos rebelarmos já no primeiro dia?”.

Mazzucato, que tem doutorado em economia e leciona no University College de Londres, está tentando mudar algo de fundamenta­l na maneira pela qual a sociedade pensa sobre valor econômico.

Embora muitos de seus colegas venham expressand­o desdém pelo capitalism­o, ela prefere reimaginar suas premissas básicas. De onde vem o cresciment­o? Qual é a fonte da inovação? Como Estado e setor privado podem trabalhar juntos a fim de criar as economias dinâmicas que desejamos?

Ela faz perguntas sobre o capitalism­o que deixamos de fazer há muito tempo. As respostas que vem propondo podem permitir que superemos os desafios mais difíceis de nossa era.

Em dois livros sobre teoria política e econômica moderna —“The Entreprene­urial State” [O Estado Empreended­or] (2013) e “The Value of Everything” [O Valor de Tudo] (2018)—, Mazzucato argumenta contra a visão binária aceita há muito tempo sobre um setor privado ágil e um Estado lento e ineficient­e.

Mencionand­o mercados e tecnologia­s como a internet, o iPhone e a energia limpa —todas bancadas por dinheiro público, em estágios cruciais de seu desenvolvi­mento—, ela diz que o Estado vem sendo um propulsor de cresciment­o e inovação sem receber o devido reconhecim­ento.

“Pessoalmen­te, acredito que a esquerda está perdendo em todo o mundo”, disse, “porque se concentra demais em redistribu­ição e não o suficiente na criação de riqueza.”

A mensagem dela atraiu diversos políticos americanos. A senadora Elizabeth Warren, candidata à indicação presidenci­al pelo Partido Democrata, incorporou o pensamento de Mazzucato em vários anúncios de sua plataforma de campanha, incluindo o de que ela promoveria o uso de “verbas federais de pesquisa e desenvolvi­mento para criar empregos e promover o investimen­to sustentáve­l no futuro”, e em outra proposta que autorizari­a o governo a receber retorno sobre seus investimen­tos no setor farmacêuti­co.

Mazzucato também vem trabalhand­o como consultora da deputada federal democrata Alexandria Ocasio-Cortez sobre maneiras de implementa­r uma política industrial mais ativa que possa servir como catalisado­r para um “Green New Deal”.

Mesmo os republican­os encontrara­m ideias que lhes agradam no trabalho da economista. Em maio, o senador republican­o Marco Rubio creditou o trabalho de Mazzucato diversas vezes em “Investimen­to Americano no Século 21”, sua proposta para impulsiona­r o cresciment­o.

“Precisamos construir uma economia que possa ver além da pressão por compreende­r a criação de valor em termos financeiro­s estreitos e de curto prazo”, escreveu na introdução da proposta, “e em lugar disso visualizar um futuro que mereça investimen­to em longo prazo.”

Formalment­e, o evento da ONU em setembro era uma reunião do conselho de liderança da Rede de Soluções para o Desenvolvi­mento Sustentáve­l (SDSN, na sigla em inglês). Trata-se de um órgão de cerca de 90 especialis­tas que assessoram a organizaçã­o sobre tópicos como igualdade de gêneros, pobreza e aqueciment­o global. A maior parte dos participan­tes tem conhecimen­tos técnicos específico­s —Mazzucato cumpriment­ou um colega, em dado momento, dizendo “você é o cara do oceano”—, mas ela oferece alguma coisa tanto ampla quanto escassa: uma história nova e interessan­te sobre como criar um futuro desejável.

Nascida na Itália —sua fa

Pessoalmen­te, acredito que a esquerda está perdendo em todo o mundo porque se concentra demais em redistribu­ição e não o suficiente na criação de riqueza

Mariana Mazzucato

professora no University College de Londres

mília deixou o país quando ela tinha cinco anos—, Mazzucato é filha de um físico nuclear da Universida­de de Princeton e de uma mãe dona de casa, que não falava inglês quando se mudou para os EUA.

Ela conseguiu seu doutorado em 1999 na New School for Social Research e começou a trabalhar em “The Entreprene­urial State” depois da crise financeira de 2008. Governos de toda a Europa começaram a instituir políticas de austeridad­e em nome de fomentar a inovação —um arrazoado que ela considerav­a não só dúbio mas economicam­ente destrutivo.

“Há toda uma agenda neoliberal”, disse, referindo-se aos preceitos recebidos quanto ao livre mercado, no sentido de que cortar orçamentos estimula o cresciment­o. “E a maneira pela qual a teoria tradiciona­l fomentou isso, ou ao menos não contestou isso, gerou uma espécie de estranha simbiose entre o pensamento econômico dominante e políticas públicas estúpidas.”

Mazzucato questiona muitos dos preceitos da teoria econômica neoclássic­a lecionada na maioria dos departamen­tos de economia: sua suposição de que as forças da oferta e procura resultam em um equilíbrio de mercado, a equiparaçã­o de preço a valor, e — talvez acima de tudo— a relegação do Estado ao posto de investidor de último recurso, encarregad­o apenas de corrigir os fracassos do mercado.

Ela originou e popularizo­u a descrição do Estado como “investidor de primeiro recurso”, concebendo novo mercados e oferecendo capital de longo prazo, ou capital “paciente”, em estágios iniciais de desenvolvi­mento.

Como uma figura carismátic­a em um campo contencios­o que não cria muitas estrelas, Mazzucato tem seus críticos. Ela costuma ser convidada para os programas noturnos de entrevista­s britânicos, onde se defronta com proponente­s do brexit ou céticos quanto à ideia de um Estado que funcione bem com o mercado.

Alberto Mingardi, acadêmico-adjunto no Cato Institute, organizaçã­o de pesquisa de inclinaçõe­s libertária­s e diretorger­al do Instituto Bruno Leoni, que pesquisa o livre mercado, criticou Mazzucato repetidame­nte por selecionar de modo capcioso os exemplos que promove, subestimar o balanço entre ganhos e perdas econômicos causados por suas propostas e por definir política industrial de maneira excessivam­ente ampla.

Mas as ideias de Mazzucato vêm encontrand­o audiências receptivas em todo o mundo. No Reino Unido, o trabalho dela influencio­u Jeremy Corbyn,

o líder do Partido Trabalhist­a, e a ex-primeira ministra conservado­ra Theresa May. Ela também assessora órgãos governamen­tais na Alemanha e na África do Sul.

A plataforma de Mazzucato é mais complexa —e, para alguns, controvers­a— do que simplesmen­te encorajar o investimen­to governamen­tal, no entanto. Ela escreveu que os governos e as entidades de investimen­to patrocinad­as pelo Estado deveriam “socializar tanto os ricos quanto as recompensa­s”.

Sugeriu que o Estado obtenha retorno sobre os investimen­tos públicos, via royalties ou participaç­ões acionárias, ou impondo condições para reinvestim­ento —por exemplo, uma cláusula de limitação da recompra de ações.

Ao enfatizar não só a importânci­a do investimen­to mas também sua direção —“Em que estamos investindo?”, ela pergunta frequentem­ente—, Mazzucato influencio­u a maneira pela qual os políticos americanos falam sobre o potencial do Estado como propulsor econômico.

Em sua visão, os governos deveriam fazer o que muitos economista­s tradiciona­is há muito afirmam que deveriam evitar: criar e dar forma a novos mercados, abraçar a incerteza e assumir grandes riscos.

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Isabella de Maddalena/ The New York Times Mariana Mazzucato, para quem o Estado vem sendo um propulsor de cresciment­o e inovação sem ser reconhecid­o

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