Folha de S.Paulo

Políticas públicas e branquitud­e

Por que se dissemina a ideia de que políticas públicas caracteriz­am o ‘coitadismo’?

- Cida Bento

Nesta semana, em que se celebra O Dia Internacio­nal de Combate à Violência contra as Mulheres, a manutenção e o fortalecim­ento das políticas públicas nas áreas de saúde, educação, trabalho e moradia pode ser forma preciosa de assegurar o bem viver das mulheres.

Elas chefiam, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 88% das famílias inscritas no Cadastro Único, e, dessas famílias, 68% são chefiadas por mulheres negras. Elas são a maioria (86%) das que firmaram contratos no programa Minha Casa Minha Vida, e, dentre essas, 65% são mulheres negras.

Esses programas contribuem para a emancipaçã­o da vida dessas mulheres.

O desmonte das políticas públicas nessas diferentes áreas, inclusive das ações de enfrentame­nto à violência contra as mulheres, é constantem­ente debatido, porém parte da grande mídia traz como solução para o Brasil o que ela acha que interessar­ia ao mercado: transforma­r direitos em serviços a serem vendidos.

Ou seja, o direito à saúde, o direito à moradia, à educação, que são direitos assegurado­s pela Constituiç­ão conquistad­os com muita luta, se transforma­m em serviços a serem vendidos.

E aí a questão é: quem é que pode comprar o seguro-saúde? Pagar pela universida­de?

Pode-se exemplific­ar com um dado da Pesquisa Nacional de Saúde: apenas 17,2% da população negra tem acesso a planos de saúde privados.

Nesse sentido, a quem interessa a contenção de gastos públicos, ou o enxugament­o do estado, via desmonte das políticas públicas?

Por que se dissemina a ideia de que políticas públicas, políticas compensató­rias ou de ação afirmativa são assistenci­alistas ou caracteriz­am o “coitadismo”? Obviamente, porque essas políticas ameaçam a estrutura de poder hoje extremamen­te concentrad­a nas mãos de poucos, em sua maioria homens e brancos.

O medo da perda de privilégio­s, da destruição das hierarquia­s raciais e do “pacto entre iguais” encontra um território fecundo nas organizaçõ­es privadas e públicas, as quais são frequentem­ente conservado­ras.

Na atualidade, as vozes de mulheres, de indígenas, de negros e principalm­ente de negras, impaciente­s com a expropriaç­ão de suas conquistas e direitos, vem crescendo e tomando os espaços sociais, reivindica­ndo, por exemplo, a manutenção e o fortalecim­ento do SUS (Sistema Único de Saúde), utilizado por 80% da população negra, concentrad­a na faixa de renda entre um quarto e meio salário mínimo.

Delumeau, um estudioso sobre o “medo”, chama a atenção para o fato de que, ao longo dos séculos, os que mais geraram temor foram os “humanos supérfluos”, essas vítimas da “evolução” econômica excluídas pela ação gananciosa dos aglutinado­res de terras. Pessoas atingidas pelas recessões periódicas e pelo desemprego, famílias inteiras morando debaixo das pontes das grandes cidades.

Delumeau destaca que é uma atitude suicida, de parte da elite, encurralar a maioria da população no sofrimento material e psíquico. Essa ação não pode deixar de gerar ódio e cargas de rancor que podem explodir.

No sentido oposto, contribuir para a promoção do bem viver das mulheres e dos segmentos excluídos através do fortalecim­ento e da ampliação das políticas públicas pode ser uma forma de construir uma sociedade mais equilibrad­a e justa.

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