Folha de S.Paulo

Papo reto

O papo enrolado não para de crescer, mas o remédio está ao nosso alcance

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Aqui o papo é reto. As sinuosidad­es eventuais das frases devem ser entendidas pelo generoso leitor como limitação do escriba, não como tentativa de confundir ou enganar ninguém.

Isso não quer dizer que ele, o colunista, seja isento ou neutro, Deus o livre. Papo reto não tem nada a ver com imparciali­dade.

A questão é de comunicaçã­o e linguagem: transmitir uma ideia com clareza e exigir o mesmo em troca. Mas é sobretudo ética: fazer isso de forma honesta e franca, sem pegadinha de nenhuma espécie.

Estamos falando de uma gíria urbana popular com algumas décadas de vida. Virou nome de uma canção de 1997 do Charlie Brown Jr. antes de entrar no vocabulári­o corrente do país.

Não é para menos: papo reto é uma locução feliz no som e no sentido. Papo direto, seu pai, era mais prolixo. O filho o aprimorou e ainda se associou à geometria para brilhar com mais força.

Reta, a menor distância entre dois pontos. Nada de curvas, volteios, enrolações. É claro que o papo que vai direto ao ponto e nada esconde, em seu estado perfeito, só existe como ideal.

Todos conhecemos a malha de restrições que contém e molda nossas interações em forma de educação, inibição, respeito —as muitas tonalidade­s da hipocrisia básica que azeita as engrenagen­s sociais.

Hipocrisia, convém que se diga, desejável até certo ponto. No entanto, quando passa da medida e descamba para a desonestid­ade, um problemaço.

Na sua vida pessoal cada um pode almejar e atingir uma saudável medida de papo reto com parentes, amigos e pessoas que cruzam seu caminho.

Na vida, digamos, pública —nas interações com a incomensur­ável máquina política, burocrátic­a e comercial que nos rodeia—, temos encontrado mais dificuldad­e.

Não sei se vocês já repararam que o papo do mundo não é reto. Nunca foi, é claro, mas há indícios de que seja cada vez menos.

Tudo indica que a linguagem —palavras, signos— está passando por uma aceleração nos mecanismos de esvaziamen­to de sentido que buscam confundir o cidadão-consumidor.

Fugindo da reta, o papo quer enrolar, dar uma volta e, na maioria das vezes, levar alguém a tomar determinad­a atitude, voto ou compra, mesmo que ela contrarie seus próprios interesses.

O papo reto trabalha em casa, de forma artesanal. O papo enrolado, numa grande agência de marketing digital que exibe na carteira clientes governamen­tais e corporativ­os do primeiro escalão.

O azar do papo reto é que o papo enrolado tem também, trabalhand­o a seu favor, um gatilho psíquico ancestral da espécie, o mesmo que fez o latim se sustentar por séculos como idioma da missa católica: quanto menos entendimen­to, mais respeito.

Em seus departamen­tos mais frívolos, a agência fabrica graciosos rolinhos de embromação “científica” para todos os ramos da indústria (novo sistema contra dimensiona­l bias-free, fórmula XPTO, exclusiva ação multiativa etc.). Nos mais eruditos, esculpe a linguagem barroca de burocratas e juízes.

No andar de cima, um laboratóri­o dotado de impressora­s 3D vomita mamadeiras de piroca e santinhos sem nota fiscal enquanto, no fundo do corredor, a equipe de planejamen­to obtém grandes sucessos em campanhas como terra plana, antivacina e negação da crise climática.

A agência do papo enrolado não para de crescer. Se existe algo que ainda pode salvar o papo reto é ele mesmo. Sem moderação, usado com todo mundo, para falar sobre todas as coisas, da hora de acordar à de dormir. Papo reto.

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