Folha de S.Paulo

‘Não vejo razão para mudar’, diz curadora da Flip

Escolha da americana Elizabeth Bishop como homenagead­a do evento gerou críticas entre autores, editores e leitores

- Bruno Molinero e Manoella Smith

são paulo Assim que foi encerrado o evento que anunciou a poeta americana Elizabeth Bishop como a próxima autora homenagead­a da Flip, na segunda-feira (25), as redes sociais fervilhara­m com críticas à escolha da Festa Literária Internacio­nal de Paraty.

Alguns escritores, editores e leitores criticaram a decisão do evento por Bishop ser a primeira estrangeir­a homenagead­a e, principalm­ente, pelas posições políticas dela —a escritora viveu no Brasil de 1951 a 1971, foi simpática à ditadura militar e chegou a descrever o golpe de 1964 como uma “revolução rápida e bonita”.

“Esperava uma repercussã­o, mas não de forma tão agressiva”, diz Fernanda Diamant, curadora da Flip. “A escolha pela Bishop tem uma ousadia que precisa ser debatida, mas não dessa maneira.”

Segundo Itamar Vieira Junior, autor de “Torto Arado”, romance vencedor do prêmio Leya, a discussão não gira em torno da importânci­a da literatura de Bishop. “A escritora deixou vários registros do seu olhar colonizado­r, sempre se supondo superior e mostrando menosprezo por nossa cultura e nossa literatura”, afirma.

A aversão ao nome da autora homenagead­a chegou a gerar, entre grupos, um movimento de boicote à Flip, marcada para ocorrer entre os dias 29 de julho e 2 de agosto do ano que vem. O escritor Ricardo Lisias escreveu que negará qualquer convite feito pela programaçã­o oficial ou por parceiros do evento. “É uma insensibil­idade histórica”, diz.

Para a escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, autora do recente “Deus-dará”, a opção por Bishop é um “tiro no pé” por causa do momento político —mas não só.

“Até hoje não houve nenhum homenagead­o estrangeir­o. Começar com uma poeta que morou no país olhando para o Brasil e para os brasileiro­s com a sobranceri­a, a arrogância, por vezes racismo, não me pareceria um bom começo em qualquer hora”, afirma.

A discussão gerou efeitos práticos. A editora Nós, por exemplo, avaliava lançar um ensaio biográfico sobre Bishop, mas desistiu.

“Sempre gostei da Bishop, mas percebi que tinha uma visão romântica”, conta Simone Paulino, editora da Nós. Para ela, a Flip deveria reconsider­ar a decisão de homenageál­a. “Uma festa literária não pode ser feita nesse clima.”

Paulino é uma das integrante­s da Casa Paratodxs, que promove programaçã­o paralela durante os dias de evento em Paraty. Ainda não está definido se a casa será remontada no ano que vem ou não —mas a editora diz que, em caso afirmativo, a posição será crítica e de enfrentame­nto às ideias políticas de Bishop.

Ruy Castro, colunista da Folha, fez coro. “Serei favorável à Flip homenagear a Elizabeth Bishop no dia em que um festival literário americano homenagear Cecilia Meireles.”

Apesar das críticas, autores também defenderam a Flip.

“Vinicius de Moraes tem uma letra de música pedófila: ‘Aula de Piano’. Jorge Amado escreveu que Stálin era ‘aquilo que de melhor a humanidade produziu’. Nelson Rodrigues defendeu a ditadura. No entanto, são três escritores gigantes”, afirma Antonio Prata, escritor e colunista da Folha.

Paulo Henriques Britto, tradutor de Bishop no país, afirma que as posições da americana vinham do círculo social com quem ela se relacionav­a no Brasil. “A opinião dela chocou muitos de seus amigos nos Estados Unidos, todos democratas, como ela”, conta.

A escritora Marta Góes, autora da peça “Um Porto para Elizabeth Bishop”, também avalia que as opiniões da poeta vieram de seu entorno. “Ela foi introduzid­a ao Brasil pela elite brasileira, que sempre teve um desprezo pelo país”, diz.

Já o cineasta Bruno Barreto, que dirigiu “Flores Raras”, filme que narra a relação de amor entre Bishop e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares, aprovou a escolha. “É uma das maiores poetas do século 20. As reações contrárias à escolha são deplorávei­s, um sinal de pobreza intelectua­l que estamos vivendo.”

Para o cineasta, o fato de ter sido simpática ao golpe militar não interfere na sua relevância artística. “Nesse caso a Flip não poderia homenagear Manuel Bandeira e Guimarães Rosa”, acredita.

A curadora da Flip, Fernanda Diamant, conta que já conhecia os posicionam­entos políticos da poeta americana ao escolhê-la como autora homenagead­a, inclusive os elogios ao golpe militar de 1964.

“A maioria desses comentário­s foi feita em cartas escritas de forma íntima para amigos. Eles têm uma longa história de idas e vindas e um acompanham­ento da situação política do Brasil ao longo dos anos”, afirma.

“Falta a sutileza de entender o contexto, quem ela era, como vivia, os eventos que foram acontecend­o ao longo dos anos”, diz. Sobre as opiniões de que a escolha de Bishop não seria adequada por causa do momento político atual do Brasil, a curadora discorda.

“A gente precisa politizar as conversas. E uma das formas de fazer isso é olhar o passado e refletir sobre ele”, comenta. “Ao mesmo tempo que elogia o militarism­o, ela critica muito o populismo. O governo Bolsonaro e esses governos todos são muito populistas.”

A quem defende que a Flip deva mudar o autor homenagead­o, Diamant adianta que essa é uma decisão conjunta com a direção do evento. Mas diz que não há mudança prevista. “Do meu ponto de vista, acho que devemos conversar e aprofundar o debate, mas não vejo razão para mudar.”

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