Folha de S.Paulo

Todos os sonhos do mundo

Viemos ao mundo para sermos tudo o que podíamos ser

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello Brasil!’ (Três Estrelas), ‘Cartas a um Jovem Terapeuta’ (Planeta) e ‘Coisa de Menina?’, com Maria Homem (Papirus)

Na semana passada, nesta coluna, tentei resumir ao essencial a herança dos anos 1960 —ao menos, a herança que eles deixaram em mim.

Escrevi que os anos 1960 não inventaram nem o desbunde nem a militância radical de esquerda. Então, inventaram o quê? A proposta mais relevante daqueles anos me parece ter sido (e ainda ser) a de cada um ter de descobrir n ele mesmo quem ele é e, claro, viver de acordo com isso.

É uma ideia bonita, que se tornou, aliás, um bordão de marketing feito para nos encorajar a sermos únicos e inventarmo­s um “estilo” nosso, inconfundí­vel.

Procure na Internet “be yourself ” (seja você mesmo). Em primeiro lugar vai aparecer a música homônima do Audioslave (o extraordin­ário grupo de rock americano), cantada por Chris Cornell, c omo inesquecív­el verso do coro :“Tobeyo ursel fisallthat­youc ando ”(ser você mesmo é tudo o que você pode fazer). Hoje, escutando, penso no suicídio de Cornell, dois anos atrás, e as letras parecem dizer o caráter impossível e desesperad­o da tentativa de sermos nós mesmos.

Continuand­o nos milhões de resultados de sua procura na net, você logo encontra títulos de auto ajuda, alguns péssimos, outros bons, tanto faz, mas quase todos pressupond­o a ideia de que sinceridad­e, singularid­ade e autenticid­ade sejamos caminhos ideais par acurar nossa timidez, resolveras angústias sociais, aprendera gostar de nós mesmos e encontrar um sentido para nossa vida. O título que mais gostei: “Seja você mesmo, todos os outros lugares, de qualquer forma, estão já ocupados”.

“Seja você mesmo” evoca o sonho antigo de realizarmo­s nossas potenciali­dades: viemos ao mundo para sermos tudo o que podíamos ser. Não é raro que alguém procure uma psicanális­e, justamente, com a ideia de cavar até descobrir quem ele seria em seu âmago, para poder, a seguir, autorizar-se a se soltar e revelar assim quem ele é.

Não funciona assim: não somos brotos esperando vingar. Talvez não sejamos nada “em potência” —é bem provável que a gente só se conheça depois dos fatos, ao longo e no fim da vida, olhando para trás e descobrind­o assim que somos o que fomos, ou melhor, o que conseguimo­s ser.

Por isso mesmo, para saber quem somos, importa dar ouvidos a nossas próprias histórias. E tanto faz que elas sejam banais ou extraordin­árias, heroicas ou tranquilas, tristes ou jocosas —se soubermos escutá-las e contá-las, elas dirão nossa razão de ser, a beleza, a miséria e a eventual grandeza de nossa vida.

Os anos 1960, promovendo a tarefa de sermos nós mesmos, revelaram que é possível (e talvez seja necessário) ter carinho por qualquer vida.

Entre as leituras que, naqueles anos, me transforma­ram e me imbuíram do espírito da época, além dos beats (Ginsberg, Kerouac, Ferlinghet­ti), há uma obra mais antiga, publicada em 1915, que descobri justamente nos anos 1960, numa montagem teatral de Charles Aidman, na Broadway: “Spoon River Anthology”, de Edgar Lee Masters.

É uma coleção de epitáfios que os próprios mortos recitam a quem visitar o cemitério.

Inicialmen­te, os habitantes de Lewistown, Illinois, onde Lee Masters viveu sua juventude, acharam odioso o retrato dos reles e miseráveis “casos” de seus mortos. Mais tarde, eles entenderam que o murmúrio indiscreto dos hóspedes de seu cemitério, de fato, celebraria a vida concreta de sua cidade. E homenagear­am Edgar Lee Masters com uma estátua, bem no cemitério de Oak Hill.

O amor pela vida concreta e cotidiana, com o que ela tem de mesquinho ou de grandioso, talvez explique o interesse de minha geração pela psicanális­e —em todo caso, explica o meu.

Na semana passada, os dois últimos livros de Patti Smith, “Devoção” e “O Ano do Macaco” (ed. Companhia das Letras), serviram de exemplo para mostrar que o espírito dos anos 1960 não morreu.

Outro exemplo disso é “Todos os Sonhos do Mundo”, de Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vazquez —em cartaz de 20 de novembro a 15 de dezembro (exceto 6/12), de quarta a sábado, às 21h; aos domingos, às 19h.

Ivam Cabral, em cena, conta sua trajetória, suas batalhas contra a depressão e, sobretudo, sua origem em Ribeirão Claro, Paraná.

Ribeirão tem personagen­s que valem os da “Antologia de Spoon River”. Se você não puder assistir à peça, leia, no texto (ed. Giostri), a “história de Jane que peidou”. E não se preocupe: sua maior tristeza, no fim, será porque a peça acabou.

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Luciano Salles

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