Não acho que Scorsese pudesse realizar ‘O Irlandês’ dez anos atrás, diz Al Pacino
Ator enfim se reencontra com o amigo Robert De Niro no longa que estreou na grade da Netflix
LONDRES | THE NEW YORK TIMES Não existe placa que celebre o encontro e nenhum de seus participantes recorda a data em que aconteceu, mas em algum lugar da rua 14, no East Village de Manhattan, dois atores novatos chamados Robert De Niro e Al Pacino se encontraram pela primeira vez, no final da década de 1960.
Eles começavam a desfrutar dos primeiros momentos de visibilidade e se conheciam de nome e por reputação. Compararam currículos, se avaliaram reciprocamente —Pacino ainda se lembra de De Niro por sua “aparência incomum e certa energia”— e cada um saiu do encontro imaginando o que o futuro reservava, para si e para o homem que havia acabado de conhecer.
Meio século depois, os dois chegaram à suíte de um hotel de luxo à beira do Tâmisa, para falar do seu novo filme, “O Irlandês”. O que quer que seja possível realizar como ator, De Niro e Pacino certamente realizaram e superaram até mesmo as aspirações ambiciosas que tinham quando jovens.
Os dois deram ao cinema alguns de seus protagonistas mais hipnóticos e explosivos, em filmes muito importantes como “Taxi Driver”, “Scarface”, “Touro Indomável” e na série “O Poderoso Chefão”.
Ao fazê-lo, suas trajetórias se entrelaçaram. Eles são não só pares e colaboradores ocasionais, como amigos genuínos que vez ou outra encontram tempo para entrar em contato, contemplar possíveis projetos e trocar provocações amistosas.
“Nós nos encontramos e comparamos anotações”, diz De Niro. “Não sentimos falta um do outro. Mas podemos sentir falta um do outro.” O mais surpreendente talvez seja que, num momento em que os atores poderiam facilmente repousar sobre seus triunfos, Pacino, 79, e De Niro, 76, continuam a se importar imensamente com o ofício deles.
“O Irlandês”, que chegou à Netflix na última quinta (27), foi dirigido por Martin Scorsese, e põe os dois atores juntos na tela pela terceira vez. O filme, um drama criminal de escopo e ambição abrangentes, é retrospectivo de propósito e consciente do fato de que, um dia, tudo termina.
Os dois atores também se preocupam com seus legados, e em “O Irlandês” seus desempenhos estão entre os mais enérgicos de suas carreiras. Mas agora eles não têm mais o que provar ao público e encontram motivação em superar os marcos que estabeleceram no passado e em acompanhar o ritmo um do outro.
Os dois amadureceram na Nova York do pós-guerra — Pacino no South Bronx e De Niro no Greenwich Village e em Little Italy. Eram filhos de casais divorciados que foram atraídos pelas escolas de atores da cidade e se deixaram influenciar pelos formados nessas instituições, como Marlon Brando, James Dean, Geraldine Page e Kim Stanley.
Nada transformou tanto as vidas dos dois quanto “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola. O lugar de Pacino no panteão foi garantido no filme original, em 1972, com seu retrato discretamente cativante de Michael Corleone —papel que De Niro e muitos outros atores também disputaram.
Não que ele encarasse Pacino como rival: “Não é o caso de ser competitivo”, diz De Niro, que também se interessou pelo impulsivo Sonny Corleone, que ficou com James Caan.
“Se uma pessoa consegue um papel e ela é ótima nele, isso é bom”, ele afirma. “É quando um ator não é certo para o papel e foi escolhido pelas razões erradas que você lamenta, mas não fica enciumado. As coisas são assim.”
De Niro conquistou seu primeiro Oscar por “O Poderoso Chefão 2”, lançado dois anos mais tarde, no papel da versão jovem de Vito Corleone. “Eu falei que queria que Bob fosse meu papai”, diz, em tom de brincadeira, Pacino.
Juntá-los na tela por anos pareceu ser uma façanha irrealizável, mas não por falta de tentativa. O caminho dos dois por fim coincidiu, breve mas espetacularmente, em “Fogo Contra Fogo”, um drama criminal de Michael Mann de 1995 sobre um ladrão habilidoso (De Niro) e o persistente investigador de polícia (Pacino) que o persegue.
Treze anos se passaram antes que Pacino e De Niro voltassem a trabalhar juntos, em
“As Duas Faces da Lei”, um drama sobre parceiros policiais que não tinha nada de especial e que nenhum dos dois recorda com carinho. “Fizemos o filme”, diz De Niro, com humildade. “Fizemos o filme.”
“O Irlandês” é o nono longa que De Niro fez com Scorsese, mas o primeiro de Pacino com o diretor. Ainda que se conhecessem, o cineasta buscou informações antecipadas sobre o astro, com quem não estava familiarizado.
De Niro conta que “Marty [Scorsese] perguntou como era Al e eu disse que ele era um doce, você vai ver”. Além da chance de trabalhar com Scorsese e um com o outro, De Niro e Pacino viram “O Irlandês” como oportunidade de uma vez mais se investirem em figuras reais, estudando documentos e gravações desses homens para construir seus personagens de dentro para fora.
Eles dizem que o tom elegíaco do filme os atraiu. O longa acompanha seus personagens —os que sobrevivem, ao menos— até a velhice, e os deixa, quase todos solitários, a imaginar de que maneira a história irá recordá-los.
Scorsese declarou que era apropriado, e inevitável, que ele e seus atores desejassem explorar esse assunto sofrido. “Creio que todos nós compartilhamos dessa necessidade de olhar para trás”, ele disse. “Afinal, essa é a idade em que estamos. Queríamos dar forma a isso como cinema.”
Mas os atores encontraram dificuldades para contar por que essa faceta do filme os atraiu —e por motivos evidentes: quem quer admitir que está mais perto do fim das coisas do que de seu começo? Com alguma hesitação, De Niro afirma que ele e Pacino tiveram de encarar as questões existenciais que “O Irlandês” desperta.
“Estamos num ponto mais próximos de ver...” —De Niro faz um gesto oscilante, como que para indicar o que existe do lado de lá de uma colina, enquanto busca palavras. “Não quero dizer o fim, mas pelo menos o horizonte”, diz. “O começo da trajetória descendente que nos leva ao que existe do outro lado.”
Pacino afirma que viu essas ideias com mais clareza depois do final do filme. Se isso influenciou seu desempenho em alguma medida, ele diz, a responsabilidade cabe à direção de Scorsese e ao longo processo de gestação do filme.
“Não acho que ele pudesse fazer um filme como esse dez anos atrás”, diz Pacino. “Ele acessou alguma coisa que não consigo identificar e que fiquei surpreso por sentir. O que é isso, onde estamos? E essa incerteza ao agir?” Tradução de Paulo Migliacci