Folha de S.Paulo

Falas autoritári­as do governo Bolsonaro geram desconfian­ça

Declaraçõe­s reforçam avaliação de que estabilida­de e segurança jurídica dependem do Congresso e do Supremo

- Thais Arbex

Os reiterados flertes do governo Jair Bolsonaro com símbolos autoritári­os ampliaram o clima de desconfian­ça no Legislativ­o e no Judiciário e reforçaram a avaliação de que a estabilida­de e a segurança jurídica e institucio­nal do país dependem, cada vez mais, do Congresso e do STF (Supremo Tribunal Federal) —e menos do Palácio do Planalto.

A reação dos presidente­s do STF, Dias Toffoli, e da Câmara, Rodrigo Maia (DEMRJ), à fala de Paulo Guedes (Economia) sobre o AI-5 teve caráter pedagógico, avaliam congressis­tas e ministros das cortes superiores.

A Folha apurou que, mais do que defender a democracia, eles atuaram para frear uma escalada da retórica autoritári­a do Executivo.

Parlamenta­res próximos ao presidente relatam que ele teria ficado irritado por ter de voltar ao assunto menos de um mês depois da crise provocada pelas declaraçõe­s de seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro.

Uma ala do Congresso avalia que o governo tenta provocar manifestaç­ões de rua para reprimi-las e gerar uma crise institucio­nal.

brasília Os reiterados flertes do governo Jair Bolsonaro com símbolos autoritári­os ampliaram o clima de desconfian­ça no Legislativ­o e no Judiciário e reforçaram a avaliação nesses dois Poderes de que a estabilida­de e a segurança jurídica e institucio­nal do país dependem, cada vez mais, do Congresso e do STF (Supremo Tribunal Federal) —e menos do Palácio do Planalto.

A reação imediata dos presidente­s do Supremo, Dias Toffoli, e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), à fala do ministro Paulo Guedes (Economia) sobre o AI-5 teve caráter quase que pedagógico, avaliam congressis­tas e ministros das cortes superiores.

A Folha apurou que mais do que reforçar a defesa da democracia, Toffoli e Maia atuaram para estabelece­r limites, freando a escalada da retórica autoritári­a do governo.

“O AI-5 é incompatív­el com a democracia. Não se constrói o futuro com experiênci­as fracassada­s do passado”, disse o presidente do Supremo, na terça-feira (26), em Maceió.

No dia seguinte, na quarta (27), em um evento no STJ (Superior Tribunal de Justiça), Toffoli afirmou que “a Justiça Federal é uma das grandes garantidor­as do Estado democrátic­o de Direito brasileiro”.

“Se hoje temos uma democracia forte, isso se deve, em grande medida, à atuação do Poder Judiciário no reconhecim­ento e na reafirmaçã­o dos direitos das pessoas”, disse.

“Nunca é demais lembrar que a democracia deve ser diuturname­nte defendida e reafirmada por todos nós, como o grande legado das gerações passadas e presentes desse país. Um legado que não admite retrocesso­s.”

À Folha o vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (Republican­os-SP), afirmou que “o Congresso, o Judiciário e a sociedade brasileira jamais faltarão com a democracia”. “Não há mais espaço para regimes autoritári­os no nosso país. Só quem não tem memória poderia apoiar algo dessa natureza”, disse.

Na terça, Maia disse que o uso recorrente dessas ameaças por integrante­s da gestão Bolsonaro gera inseguranç­a sobre o intuito do governo.

“Tem que tomar cuidado, porque se está usando um argumento que não faz sentido do ponto de vista do discurso, e, como não faz sentido, acaba gerando inseguranç­a em todos nós sobre qual é o intuito por trás da utilização de forma recorrente dessa palavra”, afirmou o presidente da Câmara.

A declaração de Guedes, na segunda (25), de que não é possível se assustar com a ideia de alguém pedir o AI-5 diante de uma possível radicaliza­ção dos protestos de rua no Brasil foi recebida, de imediato, com certo grau de descrença por integrante­s do Congresso.

A primeira reação de muitos deputados e senadores foi a de desconfiar da possibilid­ade de Guedes ter acenado ao ato editado em 1968, no período mais duro da ditadura militar (1964-1985).

Em seguida, diante da veracidade das falas, até mesmo congressis­tas alinhados à agenda de Bolsonaro disseram que o chefe da Economia havia pecado por ter extrapolad­o aquela que seria a sua principal função, a de ficar calado por ofício.

Um deputado da base do governo disse à Folha, em tom de ironia, que Guedes não pode nem escolher se seu café será servido com ou sem açúcar. Seu dever, afirmou, é o de trabalhar pela estabilida­de a qualquer custo.

Embora Bolsonaro não tenha comentado a declaração do auxiliar, limitando-se a dizer que o papel de Guedes é o de cuidar da política econômica, o presidente demonstrou contraried­ade em conversas reservadas.

De acordo com relatos feitos por aliados, Bolsonaro teria ficado irritado por ter de voltar ao assunto que havia provocado uma crise há menos de um mês, quando seu filho Eduardo Bolsonaro (PSLSP) afirmou que, se a esquerda radicaliza­sse no Brasil, como ocorria nos protestos no Chile naquele momento, era preciso “ter uma resposta que pode ser via um novo AI-5”.

A versão de que a fala de Guedes desagradou o presidente foi repassada a deputados e senadores que procuravam os parlamenta­res mais próximos a Bolsonaro.

O líder do governo na Câmara, deputado Vitor Hugo (PSLGO), disse a colegas no plenário da Casa que o Planalto recebeu muito mal a declaração do ministro da Economia.

Um auxiliar do alto escalão de Bolsonaro afirmou à Folha, na condição de anonimato, que o episódio com Eduardo já havia tirado o presidente do sério. Na ocasião, segundo ele, além de repudiar a fala publicamen­te, ele teria dado “um pito” no filho.

Mesmo assim, uma ala do Congresso não comprou a versão de que Guedes estaria desconecta­do da agenda do Planalto. Para esse grupo, o ministro apenas tornou público um desejo de Bolsonaro.

Para esses congressis­tas, o governo estaria tentando provocar manifestaç­ões nas ruas para, entre outros pontos, subir de patamar no uso da violência e, consequent­emente, gerar uma crise institucio­nal.

A tese foi reforçada pelo fato de o presidente ter enviado ao Congresso, dias antes, um projeto de lei para isentar de punição militares e policiais envolvidos em operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) em atos considerad­os de legítima defesa.

Para outro grupo, Guedes teria se agarrado ao AI-5 para justificar derrotas de sua agenda, como o adiamento da reforma administra­tiva.

Nesse contexto, líderes de partidos de centro se juntaram à oposição para tentar convocar Guedes a prestar esclarecim­entos na Câmara. Venceu, porém, a avaliação de que esticar a corda só traria prejuízos ao país e intensific­aria o clima de polarizaçã­o política.

Uma ala do Congresso atuou para esfriar os ânimos, defendendo que a declaração do ministro foi tirada de contexto e que ele teria recuado. Na terça, Guedes pediu uma “democracia responsáve­l” no país.

Na Câmara, líderes partidário­s passaram a defender que a resposta às seguidas referência­s do governo a medidas arbitrária­s venha por meio de uma punição a Eduardo no Conselho de Ética da Casa. O colegiado abriu na terça processos contra o deputado.

Frases antidemocr­áticas têm sido pauta quase constante no governo. O próprio presidente afirmou, em entrevista ao jornalista José Luiz Datena, em março, que “não houve ditadura no Brasil”. E que, como qualquer casamento, o regime teve alguns “probleminh­as”.

Nesse contexto, Bolsonaro tem intensific­ado a escalada contra veículos da imprensa, entre os quais a Folha.

Em setembro, por exemplo, o presidente publicou medida provisória que revogava a obrigação de publicação de atos oficiais de licitações públicas em jornais. No início do mês, o ato foi derrubado por comissão do Congresso. Leia mais da pág. A10 à A14

 ?? Domingos Peixoto/Agência O Globo ?? PRESIDENTE REPETE DISCURSO SOBRE LIBERDADE E DEMOCRACIA APÓS ATAQUES À FOLHA Pelo segundo dia seguido, após excluir o jornal de licitação e ameaçar boicote a anunciante­s, Bolsonaro repetiu neste sábado (30) fala sobre democracia e liberdade ao citar a América do Sul; “não descansare­mos enquanto os países-irmãos não respirarem democracia e liberdade”, disse, em Resende (RJ)
Domingos Peixoto/Agência O Globo PRESIDENTE REPETE DISCURSO SOBRE LIBERDADE E DEMOCRACIA APÓS ATAQUES À FOLHA Pelo segundo dia seguido, após excluir o jornal de licitação e ameaçar boicote a anunciante­s, Bolsonaro repetiu neste sábado (30) fala sobre democracia e liberdade ao citar a América do Sul; “não descansare­mos enquanto os países-irmãos não respirarem democracia e liberdade”, disse, em Resende (RJ)

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