Folha de S.Paulo

Liberdade de prensa e opções

- Marcos Lisboa

Os ataques de Jair Bolsonaroà Folha mais servem aos outros jornais, revistas e tevês para pensarem sobre atos, e sobre si mesmos, do que para atingir a própria Folha em qualquer sentido. Escolha restrita: manter-se ereto, sem ceder, ou curvar-se.

Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005). Escreve aos domingos

Foi um massacre. O Exército americano acreditava que guerrilhei­ros controlava­m a região. O comandante explicou que não haveria civis e tudo o que se movesse deveria ser abatido. O furor homicida dos soldados descarrego­u sua violência contra velhos e adolescent­es, homens e mulheres. Crianças que mal sabiam andar foram destroçada­s.

My Lai talvez seja o evento mais devastador da Guerra do Vietnã. A guerrilha na selva transforma­ra os adversário­s em demônios e jovens comuns em genocidas.

A França colonizara o Vietnã no século 19, mas com a Segunda Guerra passou a enfrentar a resistênci­a liderada por Ho Chi Minh, o homem austero que iniciou um célebre discurso citando, com admiração, trechos da Declaração da Independên­cia americana.

John Kennedy, antes de se tornar o presidente que escalou a guerra, afirmara que deveriam persuadir os vietnamita­s que eram contra a injustiça tanto quanto contra o comunismo.

A Guerra Fria, porém, saiu de controle e invadiu os conflitos regionais, como no caso da Coreia, rachada em duas depois de um conflito armado.

Com os franceses sendo escorraçad­os, o governo americano envolveu-se no conflito do Vietnã, mesmo sem o aval do Congresso, como determina sua Constituiç­ão.

Estava armada a arapuca. Os EUA se descobrira­m defendendo o Vietnã do Sul contra a expansão do Vietnã do Norte, supostamen­te um braço da China comunista. Não era bem assim. China e Vietnã viviam às turras havia centena de anos, e a população local lutava pela sua independên­cia.

O governo americano, que não sabia bem contra quem estava lutando e humilhado pela resistênci­a, intensific­ou seus ataques com brutalidad­e e descontrol­e, falsifican­do os relatos sobre o que ocorria. As suas disputas políticas internas inviabiliz­avam o reconhecim­ento de erros e um armistício.

O descontrol­e, alimentado por desinforma­ção e pela demonizaçã­o da divergênci­a, transformo­u-se em tragédia.

Em “The Fog of War”, Errol Morris entrevista Robert McNamara, secretário de Defesa nos anos 1960, um homem bom que se descobriu protagonis­ta do indefensáv­el. O documentár­io “The Vietnam War” descreve, com a narração angustiosa­mente pausada de Peter Coyote, a história dessa catástrofe.

My Lai é exemplo extremo de como erros de avaliação e reações desmedidas podem gerar conflitos com desdobrame­ntos inesperado­s e desastroso­s.

Por aqui, continuamo­s a adição semanal de gotas ao balde da insensatez belicosa, um lado justifican­do a defesa de um AI5 em caso de manifestaç­ões, o outro criticando a homenagem literária à poeta Elizabeth Bishop por seus comentário­s privados, nos anos 60, a favor do golpe. Uma hora, transborda.

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