Folha de S.Paulo

Catarse coletiva na TV está em falta

- Luciana Coelho

Quem decreta que as séries enterraram o gancho clássico —a cena final,insidiosa, que fisga o espectador e o enche de expectativ­a para o episódio seguinte— esqueceu-se da HBO, que redobra a aposta no formato de exibição semanal em seus dramas e comédias.

Com êxito, aliás: parte da potência de “Game of Thrones”, seu maior sucesso (e também de toda TV paga ou streaming), vem justamente do suspense mantido entre os episódios, exibidos ao ritmo de um por semana, esperados e assistidos de forma coletiva.

Outros títulos da emissora, de “Chernobyl” a “Catherine the Great” passando pela comédia “Silicon Valley”, adotam o formato, todos com sucesso ainda que sem tanto estrondo.

Mesmo a série que pariu as maratonas como conhecemos hoje, “House of Cards”, na Netflix, não abria mão do suspense nos minutos finais de cada episódio, especialme­nte no início, antes de o roteiro desandar.

Se em grande parte os melhores autores mantêm-se fieis a esse pilar da dramaturgi­a, porém, não se pode dizer o mesmo do público em geral.

O acesso permanente a uma torrente de séries (ou “conteúdos”) nos leva a consumi-las vorazmente, muitas vezes sem pensá-las por mais de alguns segundos. O gancho no fim segue lá, impelindo-nos para o próximo capítulo, nós é que não nos entregamos a ele.

Esse modelo pariu produções que mais parecem um filme ou peça fatiados, técnica que não é boa ou ruim em si, mas que é mais traiçoeira.

Woody Allen errou a mão ao escrever para a Amazon “Crise em Seis Cenas”, em 2016, dessa forma; mas recentemen­te Phoebe Waller-Bridge arrebatou crítica e espectador­es (com “Fleabag”), na mesma plataforma. Ambas prescindem de gancho,preferindo­umainterru­pção quase casual.

E há aquelas histórias que desdenham o gancho mas não se contam em fôlego único, explorando a divisão em capítulos como linguagem. Entra aí “Boneca Russa”, um dos roteiros mais originais dos últimos anos, e suas repetições que talvez desencanta­sse o espectador se exibidas ao longo de semanas.

Mais do que o suspense experiment­ado individual­mente por cada expectador entre um capítulo e outro, o que parece esvanecer é a experiênci­a televisiva como algo coletivo.

O streaming é a potenciali­zação da experiênci­a solitária, convenient­e em uma sociedade ultraindiv­idualista (daí, talvez, seu sucesso agora).

A catarse vivenciada em salas de cinema e com finais de séries e novelas outrora hoje é reservada a eventos esportivos e umas raras produções, que passaram a ser tratadas também como eventos, pois a experiênci­a de trocar ideias, dividir sensações e conciliar gostos é cada vez mais indesejada a olhos grudados em celulares e existência­s absortas.

Não é à toa que o termo usado para “maratonar” em inglês, “binge-watching”, ecoa “binge-drinking”, que significa encher a cara às pressas. Em um e em outro caso, depois de um certo ponto, nem se consegue apreciar mais nada.

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