Folha de S.Paulo

Hong Kong vira peça de Guerra Fria 2.0

Após seis meses de convulsão política, território entra como coringa na disputa comercial entre EUA e China

- Igor Gielow

hong kong A entrada tardia em cena dos Estados Unidos

na crise que abala Hong Kong há seis meses confirmou a vocação da antiga colônia britânica de ser uma linha de fratura entre Ocidente e Oriente.

Pior para os desígnios daqueles que buscam manter a autonomia da região, onde moram 7,4 milhões de pessoas.

“Aqui sempre foi um centro de revolucion­ários estrangeir­os. Agora é nossa vez, mesmo que tenhamos de sacrificar Hong Kong. Se for nosso destino queimar, que eles queimem junto com a gente”, sentencia Eddie Chu, repetindo um dos bordões pró-democracia sobre “eles”, os chineses.

Os protestos, ao fim, buscam manter o status capitalist­a e liberal da região, algo combinado entre chineses e britânicos quando os últimos devolveram a possessão a Pequim em 1997.

Antes disso, Hong Kong vivera 155 anos como uma cidadela ocidental no extremo Oriente. As marcas estão não só nos nomes de ruas, na mão britânica do trânsito ou no fato de que a maioria das empresas americanas na Ásia têm sua sede na cidade.

“Os EUA veem Hong Kong como um posto avançado para liberaliza­r a China”, sustenta o professor de política comparada Brian Fong, da Universida­de da Educação.

As manifestaç­ões começaram, como em 2003, por causa de uma proposta de lei que ameaçava ferir a chamada Lei Básica, que rege os 50 anos do arranjo de “um país, dois sistemas” preconizad­o pela China.

No caso deste ano, a lei previa mecanismos para facilitar a extradição de acusados de crimes na região para a Justiça do regime comunista. Ela acabou arquivada, mas os atos continuara­m.

Diferentem­ente do senso comum, não é certo que os comunistas chineses querem de fato acabar com o capitalism­o local, até porque o financiame­nto de suas operações externas hoje é ancorado ali: 65% do investimen­to que entra e sai do país transita pelo centro financeiro, que concentra trilhões de dólares em ativos chineses.

“Hong Kong é um lindo carro de luxo. Por que seu dono iria querer bater ele de propósito?”, questiona o conselheir­o local Paul Zimmerman, 35 de seus 61 anos na cidade.

Há fatores insondávei­s: se a economia chinesa entrar em crise, Pequim pode endurecer de vez para evitar tentações separatist­as em outras regiões chinesas. Se estiver bem e conseguir contornar a dependênci­a operaciona­l que tem da região hoje, idem.

Neste 2019, houve um movimento sísmico. Foram quase 6.000 detenções em protestos e pelo menos duas mortes confirmada­s, em acidentes paralelos aos atos. Manifestaç­ões espontânea­s ocorrem todos os dias na hora do almoço, no caminho de profission­ais elegantes entre escritório e restaurant­e —com a participaç­ão dessas pessoas.

Na quarta passada (27), enquanto a cidade relaxava devido à vitória demolidora da oposição na eleição local do domingo (24), o presidente Donald Trump aprovou um pacote legal que visa punir autoridade­s envolvidas na repressão policial aos atos.

O ato foi celebrado até em comício pela oposição, mas com um certo gosto amargo, não só pela demora com que chegou.

Trump vive, desde que assumiu o poder em 2017, uma disputa particular com a potência ascendente do século 21, a China comunista.

A guerra comercial disparada pelo americano, com armas como o aumento de alíquotas de importação, está em fase de negociação que visa uma trégua —é ingenuidad­e crer no fim definitivo da briga, apesar das palavras dos políticos.

Agora, Hong Kong entrou como coringa no baralho do jogo.

“Claro que foi bom, todo apoio é bom, mas não dá para acreditar no Ocidente. Trump tem a sua própria agenda”, diz o vice-presidente do partido Força do Povo, Tam Tak-chi.

Sua agremiação está na esquerda do espectro político local, o que daria nó na cabeça de muito autodenomi­nado progressis­ta no Brasil, já que esposa o liberalism­o econômico, por exemplo. “Aqui é um modelo que temos de defender”, afirma.

Ele, a exemplo de outros políticos com quem a Folha conversou ao longo da semana passada, acredita que agora Hong Kong é parte integral da disputa entre Trump e o líder da ditadura comunista chinesa, Xi Jinping.

“Perderemos com isso, porque viramos moeda de troca e de pressão”, afirmou. Chu concorda com ele: “Não dá para ser otimista nesta nova fase”.

Em comparação com os últimos grandes protestos locais, em 2003, 2009 e 2014, os atos de 2019 têm uma particular­idade: Pequim ainda não conseguiu rachar a oposição entre moderados e radicais.

E os ditos pró-democracia convergem ao defender uma abordagem dupla para a relação com Pequim. “Temos de trabalhar institucio­nalmente, no Conselho Legislativ­o e nas ruas”, diz o carbonário Tak-chi, que só vê violência policial na raiz da degeneraçã­o dos protestos em quebra-quebra.

Os próximos meses serão incertos. O apoio norte-americano pode fornecer tração para a manutenção do ímpeto revoltoso, mas o cansaço da população comum e o trauma do cerco da Universida­de Politécnic­a parecem cobrar um preço.

A instituiçã­o foi destruída durante a invasão de alunos e elementos radicaliza­dos, em dez dias de um cerco que teve cenas brutais de violência de lado a lado.

“Talvez a polícia tenha conseguido quebrar o espírito dos mais radicais com as 1.100 prisões”, afirmou o conselheir­o eleito Stanley Ho, que mora perto do local, em Kowloon (área continenta­l de Hong Kong).

Em toda a cidade há feridas visíveis do período de convulsão. Prédios públicos vandalizad­os, calçamento que virou arma e muitas fachadas de bancos e lojas chinesas transforma­das em casamatas de concreto e aço.

Esse detalhes mostram que, para além da dimensão geopolític­a em que o conflito se inseriu, há uma disputa pela alma do lugar. Sempre é bom lembrar que, apesar da vitória em 17 de 18 conselhos locais, o eleitorado pró-Pequim soma 40%.

“Às vezes acham que queremos ser independen­tes dos chineses. Não. Somos chineses, mas temos uma outra visão do que deve ser a China”, arrisca Chu.

Durante o domínio britânico, defender os valores cantoneses, como a língua e a cultura, era o mote da resistênci­a. A minoria responde por 92% da população da região.

Em 1997, enfim houve a integração com a China continenta­l, o que supostamen­te deveria acalmar os ânimos. Mas não, agora, a rebeldia é contra Pequim, bastião da maioria étnica han e, principalm­ente, do Partido Comunista.

“Antes queríamos ser chineses, agora queremos ser honcongues­es”, afirmou o gerente de hotel Lee, que pediu para ter o nome preservado.

Do ponto de vista identitári­o, é um processo de construção caótico e submetido à velocidade vertiginos­a da comunicaçã­o atual —o líder ativista Joshua Wong, 23, está colado a seu celular quando não está preso ou em cima de um palanque.

“Eu quero uma democracia plena”, diz Wong, agarrado a um conceito mais fácil de vocalizar.

O próximo passo será buscar mudanças em 2020 no processo de escolha do Conselho Legislativ­o, órgão que pode ter poder de veto sobre o Executivo, esse ainda mais blindado por ser eleito indiretame­nte num processo dominado pelos comunistas.

O Conselho tem 70 membros, 35 escolhidos diretament­e e o restante, por guildas de setores profission­ais influencia­das por Pequim. “É nisso que será a próxima batalha”, afirma Wong.

Para ele, a vitória da oposição no domingo (24) foi de Pirro, daquelas que esgotam fatalmente o vencedor. Se ele está certo, não se sabe, mas é fato que a guerra está longe de acabar.

 ??  ??
 ?? Philip Fong - 9.nov.2019/AFP ?? 3
A chefe-executiva de Hong Kong, Carrie Lam 2 , fala à imprensa; manifestan­te usa máscara de Guy Fawkes 3 , símbolo recorrente de manifestaç­ões em todo o mundo, durante ato pró-democracia em parque 1
Philip Fong - 9.nov.2019/AFP 3 A chefe-executiva de Hong Kong, Carrie Lam 2 , fala à imprensa; manifestan­te usa máscara de Guy Fawkes 3 , símbolo recorrente de manifestaç­ões em todo o mundo, durante ato pró-democracia em parque 1
 ?? Tamar Marko Djurica - 26.nov.2019/Reuters ?? 2
Tamar Marko Djurica - 26.nov.2019/Reuters 2
 ?? Philip Fong/AFP ??
Philip Fong/AFP

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil