Folha de S.Paulo

Carta de capitão russo é encontrada quase 30 anos depois no Sul do Brasil

Mensagem em garrafa é de marinheiro que comemorava aniversári­o durante missão científica

- Paula Sperb

porto alegre

. Assim começa uma misteriosa carta encontrada dentro de uma garrafa nas areias da praia do Hermenegil­do, em Santa Vitória do Palmar, a 437 km de Porto Alegre. O local fica próximo do Chuí, no Rio Grande do Sul, onde termina o Brasil e começa o Uruguai.

“Dirigia um quadricicl­o quando me acidentei em um buraco. Os cinco jipes e outros dois quadricicl­os pararam. As crianças desceram dos jipes e começaram a brincar. Elas perceberam alguma coisa na areia”, lembra a universitá­ria Paula Rodrigues de Souza, 22, sobre o acampament­o com amigos em 20 de setembro.

“Todo mundo ficou eufórico. Era uma garrafa com um papel dentro. Um dizia que era um mapa do tesouro, outro que era uma carta de amor ou, quem sabe, de refugiados. A carta estava úmida e não conseguimo­s tirar. Então, quebraram a garrafa”, conta.

Mas não era possível identifica­r o que estava escrito com a tinta apagada. Os amigos voltaram para casa e deixaram o papel secando. De repente, começaram a aparecer as palavras. “A gente não conseguiu entender nada”, diz Paula.

A estudante publicou a imagem nas redes sociais. Os internauta­s ajudaram a descobrir que se tratava de uma carta em russo. Não demorou para que virasse notícia na imprensa local, ganhasse uma tradução incompleta —porque o documento ainda não estava nítido— e especulaçõ­es sobre sua origem.

Paula foi orientada a levar a missiva à Universida­de Federal de Pelotas (UFPel). O material foi analisado pelo Laboratóri­o de Conservaçã­o e Restauraçã­o de Papel.

“A grande expectativ­a era ver o texto, porque estava bem apagado. Por isso, com luzes direcionad­as e uma máquina fotográfic­a, demos mais visibilida­de ao conteúdo”, explica Silvana Bojanoski, professora da graduação em Conservaçã­o e Restauraçã­o de Bens Culturais Móveis da UFPel.

A carta ficou legível. “Endereçado a quem não tiver preguiça de pescar esta garrafa! Ela foi tomada a despeito de todas as ordens e diretivas do MRKh (Ministério da Pesca da URSS) e do governo por marinheiro­s de verdade, que observam e se lembram das tradições marítimas no dia de celebração do aniversári­o do marinheiro emérito e capitão dos mares V. A. Iudin, em 21 de março de 1990. Àquele que encontrar esta missiva, peço informar a hora e local da descoberta e da leitura desta carta”, diz o texto [leia ao lado o original].

O material foi traduzido paraa Folha por Marina Darmaros, doutora em Cultura e Literatura Russa pela Universida­de de São Paulo (USP), e Dmítri Golub, filólogo pela Universida­de Estatal de Moscou.

A dedução mais óbvia é que o conteúdo da garrafa fosse vodca. Os marinheiro­s a beberam “a despeito de todas as ordens”, como diz a carta, possivelme­nte porque, além de estarem trabalhand­o, a Rússia acabava de sair de uma “lei seca”.

“Em 1985, Mikhail Gorbachev passou no Politburo do Partido Comunista suas ’Medidas para superar a embriaguez e o alcoolismo’, procurando reeditar a proibição vigente entre 1919 e 1925”, explica o pesquisado­r Moisés Wagner Franciscon, doutor em história pela Universida­de Federal do Paraná (UFPR).

Gorbachev queria “reimpor disciplina” em um cenário em que a “falta de perspectiv­as na sociedade soviética do período da Estagnação (1975-1985)” levou milhares ao alcoolismo, explica Franciscon. Cerca de 397 mil pessoas trabalhava­m na produção ilegal de bebida em 1987, o que colaborou para o surgimento da máfia russa.

O governo acabou recuando, mas quando a carta foi escrita, ainda era proibido vender bebidas antes das 14h e aos domingos.

Quem comemorava o aniversári­o em alto mar era o capitão Victor Adrianovic­h Iudin, que completava 51 anos na embarcação “A. Yohani” (BMRT Andrus Johani).

Hoje octogenári­o, ele vive em Kaliningra­do. Quando sua carta foi achada, 29 anos depois, chegou-se a cogitar que tenha sido arremessad­a no mar da Groenlândi­a. Mas a Folha conseguiu falar com um amigo dele, Vjacheslav Simonov, 80, que garante que não. Eles estudaram juntos na Ucrânia em 1956.

“Naquele dia, o navio de Iudin estava no Atlântico Sudoeste”, disse Simonov. Tratavase de uma expedição científica para coletar informaçõe­s sobre lulas e peixes. Simonov mantém contato com Iudin. A localizaçã­o correspond­e à costa brasileira, do Recife para baixo até o Estreito de Magalhães, na Argentina.

“O Rio Grande do Sul fica perto da fronteira uruguaia. Os navios soviéticos eram reparados nos portos de Buenos Aires e de Montevidéu. Então, quero afirmar que a garrafa foi jogada no mar na área do Brasil”, diz.

A latitude e longitude exatas seguem desconheci­das. “As coordenada­s onde a garrafa foi lançada permanecer­ão um mistério para sempre”, diz o amigo.

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Fotos Divulgação/Laboratóri­o de Conservaçã­o e Restauraçã­o de Papel
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A carta foi recuperada pelo Laboratóri­o de Conservaçã­o e Restauraçã­o de Papel da Universida­de Federal de Pelotas e só depois pôde ser traduzida

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