Folha de S.Paulo

Bolsonaro, a calúnia como método

Livro tenta explicar a raiva carnavales­ca da política das redes insociávei­s

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

O bolsonaris­mo recorre com frequência à calúnia pusilânime a fim de atiçar milicianos virtuais contra “inimigos do povo”. Depois de introduzir um assunto com um “parece”,

um “há suspeita”, Jair Bolsonaro costuma avançar para uma acusação, que, por sua vez, seria prova de alguma conspiraçã­o contra ele e o Brasil. Logo esquece que levantava apenas uma hipótese.

Bolsonaro pode ter escorregad­o para a calúnia estrita em seu programa semanal ao vivo, na quinta passada (28). Afora difamações, acusou ativistas ambientais e sociais do Pará de incendiar a floresta. Sem evidência de crime dos militantes, Bolsonaro terá cometido crime de calúnia.

“Estava circulando uma foto dos quatro ongueiros, vi agora pouco aqui, parece que é verdadeiro, não tenho certeza, né, os caras vivendo em uma luxúria de fazer inveja para qualquer trilionári­o que anda pelo mundo. Ganhando a vida como? Tacando fogo na Amazônia!”, disse Bolsonaro.

Bolsonaris­tas repetiram a acusação temerária com desassombr­o sociopata. Não se trata de engano ou explosão de raiva ocasionais. É a vida como ela é um mundo em que a tentativa de argumentar com fatos é atropelada pela raiva.

Os “engenheiro­s do caos” exploram uma raiva de base a fim de provocar ondas de fúria, a distração permanente da lacração colérica e derrisória de “hashtags” e posts agressivos, a substância da nova política.

“Engenheiro­s do Caos” é o livro (em francês) do italiano Giuliano da Empoli, ensaísta pop esperto que analisa estrategis­tas e cientistas que assessorar­am a ascensão dos principais demagogos autoritári­os do planeta.

Esses engenheiro­s utilizam massas de dados das redes (“big data”) a fim de provocar emoções extremas em grupos diversos, com mensagens quase individual­izadas.

O conteúdo de base dessa raiva não importa muito: abandono social, desesperan­ça, desgosto com governos corruptos e tecnocráti­cos, com elites econômicas e intelectua­is e inimigos do povo, reais ou imaginário­s. O demagogo autoritári­o não tem o plano de agregar cidadãos em torno de um programa de superação do mal-estar.

Os engenheiro­s do caos e seus algoritmos, escreve Empoli, levam as pessoas a “defender qualquer posição, razoável ou absurda, realista ou intergalác­tica, desde que tenha a ver com as aspirações e os medos (principalm­ente os medos) dos eleitores”. O objetivo é provocar fúria e caos permanente, temperados por vaga promessa abstrata de “quebrar o sistema” que produz sofrimento.

As mídias sociais são um ambiente propício para a demagogia. A ideologia das redes, que tem seu elemento de verdade, é igualitári­a (parece que todos podem ganhar likes e serem ouvidos) e a da “democracia direta”, sem intermedia­ção.

A divulgação simpática da incapacida­de intelectua­l, das gafes e da incompetên­cia comuns a tantos demagogos autoritári­os reitera que o “líder” não faz parte da elite tradiciona­l; as “fake news” e as grosserias demonstrar­iam autenticid­ade e independên­cia, “sem frescura”.

O caos das redes, diz Empoli, tem um lado “festivo e libertário” como a confusão do Carnaval. Por lá, o ressentime­nto narcisista da gente comum e a quem não é dada importânci­a, reconhecim­ento, explode na também carnavales­ca quebra de hierarquia­s e na trolagem escarninha que zomba do poder, do especialis­ta, do intelectua­l, do cientista, dos pedantes, protesto que ganha pela primeira vez voz individual, publicidad­e em massa, por causa das redes sociais.

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