Folha de S.Paulo

Conversa com Nelson

É irônico o petismo usar argumento similar ao dos miliares para justificar década perdida

- Samuel Pessôa Pesquisado­r do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultori­a Reliance. É doutor em economia pela USP

Meu colega Nelson Barbosa apresentou neste espaço, na sexta (29), sua leitura da crise que levou à recessão de 2014-2016 e à lenta retomada posterior.

Para Nelson, metade da crise foi externa (queda dos preços das commoditie­s) e a outra metade foi interna.

A parte interna é dividida em três. Erros de condução de política econômica entre 2012 e 2014; política contracion­ista excessiva em 2015; e os impactos da Operação Lava Jato sobre a construção civil.

Fazendo uma contabilid­ade

simplista, os erros de política econômica do petismo “purosangue” seriam responsáve­is por 1/3 de 1/2, ou seja, por 1/6 da crise.

Há exageros tanto na atribuição de parcela significat­iva da depressão à queda dos preços das commoditie­s quanto na alegação de que a Operação Lava Jato responde pela integralid­ade da queda da construção civil.

Uma discordânc­ia que tenho com Nelson é localizar somente entre 2012 e 2014 os erros de condução de política econômica.

Penso que todo o intervenci­onismo que começou em 2006/2007 cobrou seu preço alguns anos à frente.

O intervenci­onismo —em razão de ter estimulado um número enorme de projetos mal desenhados e mal executados— levou ao endividame­nto de diversos setores, sem gerar caixa. Os investimen­tos maturaram mal.

A evidência desse fato é claríssima. Os dados de taxa de retorno das empresas abertas e das principais empresas fechadas mostram queda acentuada a partir de 2009.

De maneira geral, a atribuição excessiva da crise à Lava Jato desconhece que o esgotament­o fiscal do Estado brasileiro —Tesouro, caixa das estatais e bancos públicos— resulta de medidas e decisões tomadas bem antes de 2012.

A superestim­ação do peso da queda dos preços de commoditie­s na crise atual me faz lembrar da defesa que os militares faziam da política econômica desenvolvi­mentista de Geisel: a “culpa” da crise dos anos 1980 era do governo americano, que resolveu subir os juros, e dos árabes, que elevaram o preço do petróleo.

Nós, da esquerda, respondíam­os que ter tomado decisões —como contratar empréstimo­s a juros flutuantes e descuidar de fontes alternativ­as de energia— que expuseram a economia a esses riscos era responsabi­lidade do governo.

É irônico ver o petismo empregar hoje argumentos semelhante­s aos dos militares para justificar a sua década perdida.

Certamente a crise seria muito menor: se não tivéssemos alterado o marco regulatóri­o do petróleo; se não tivéssemos iniciado um ambicioso programa de substituiç­ão de importação no setor; se não tivéssemos endividado excessivam­ente a Petrobras; se não tivéssemos atrasado em cinco anos os leilões de petróleo; etc.

Finalmente, discordo da crítica à política de Joaquim Levy. Achar que o reajuste dos preços represados e o tímido ajuste fiscal de 2015 respondem pela crise é inverter causa e efeito.

A inflação estava muito elevada. Adicionalm­ente, havia hiperempre­go, isto é, a taxa de desemprego estava abaixo da natural. Não fazer o dolorido ajuste de Levy seria aceitar a aceleração permanente da inflação. Não havia alternativ­a: ou o ajuste de Levy ou a inflação. E esta, uma vez inercializ­ada, custa muito mais a ser debelada. Dilma, em seu primeiro ano no segundo mandato, não foi Macri. Acertou. Sempre reconheci esse fato.

Fernández, na Argentina, enfrentará este dilema: ajuste ou aceleração da inflação. Penso que a Argentina escolherá a permanente aceleração inflacioná­ria. O fim desse processo —pode demorar— é a hiperinfla­ção, como ocorre na Venezuela.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil