Folha de S.Paulo

Jorge Amado stalinista

Bishop era uma artífice delicada, capaz de extrair desolação de uma bisnaga

- Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”

Nesta semana, a Flip (Festa Literária de Parati) anunciou a poeta norte-americana Elizabeth Bishop como homenagead­a de 2020. Muitas pessoas de esquerda foram às redes criticar a escolha, por conta de um comentário de Bishop feito em carta a um amigo, em abril de 1964, elogiando o golpe militar.

Como é costume nas redes sociais, num clique Elizabeth Bishop estava reduzida à

“poeta-americana-que-apoiou-o-golpe”. Ela, que recebeu o prêmio Pulitzer de 1956, que era uma artífice delicada, capaz de extrair sororidade das tetas de uma cadela sarnenta e desolação de uma bisnaga, ela, que foi asmática e apaixonada, frágil, órfã, professora de Harvard, lésbica, alcoólatra, mas, sobretudo, ela que tinha este dom de clarividên­cia que permite aos poetas enxergar o mapa-múndi no bolor da parede, virou um meme do autoritari­smo, uma figurinha bolsonaris­ta.

A partir daí a questão que se colocou, no binarismo míope dos nossos tempos, foi “você é a favor ou contra a Flip, sob o governo Bolsonaro, homenagear uma-poeta-americanaq­ue-apoiou-o-golpe-militar?”

A construção não é falsa, mas é errada. Reduzir Bishop ao seu apoio pós-golpe equivale a descrever Vargas Llosa como “o escritor que deu um murro no García Márquez”; Jorge Amado como “o escritor que afirmou ter sido Stálin ‘aquilo que de melhor a humanidade produziu’”; Rimbaud como “o poeta traficante de armas”; Doris Lessing como “a escritora que abandonou os filhos na África para se dedicar à carreira na Europa”.

Diante da polêmica, corri para postar “Ida à padaria”, poema em que Bishop revela um olhar atento para a nossa tragédia social. Ao terminar de lê-lo, porém, percebi que postar os versos em que ela se compadece da prostituta e do pedinte na noite de Copacabana era cair na mesma lógica dos que a criticavam: afirmar que só vale a literatura de esquerda, que aponta diretament­e para a desigualda­de e a injustiça social.

Em alguns momentos, Bishop mira seus versos nesta direção, mas não é isso que faz dela uma grande poeta e sim seu inegável talento —essa espécie de bênção que pode surgir tanto num autor de direita quanto de esquerda, mendigo ou aristocrat­a, preto ou branco, mulher ou homem, hétero ou gay, contra ou a favor do golpe de 1964 —e que nos ajuda a enxergar para além da epiderme dos seres e das coisas.

Algumas vozes sensatas, assustadas feito eu com o que se passa no país, afirmaram que o problema não é a posição política da poeta: o problema é o momento. O argumento faria sentido se Bishop tivesse uma obra em defesa do autoritari­smo, poemas rimando porões com guardiões e ditadura com cura. Mas seus versos não têm nada a ver com isso. Quem os lê é muitíssimo menos propenso a pegar em armas do que a pegar uns lenços.

Bishop teve uma relação intensa com o Brasil. Em suas cartas, surgem muito afeto e muitas críticas, também: algumas fruto de preconceit­o e desconheci­mento, outras apenas de uma atenta observação. O que importa, porém, mais que os resmungos epistolare­s, é a obra. E o Brasil é parte importante desta obra: foi aqui que pela primeira vez a poeta se sentiu amada, encontrou um lar e a paz de espírito.

Homenageem­os Bishop e debatamos, entre inúmeros outros pontos, porque a elite brasileira —janela através da qual a poeta viu o país— apoiou um golpe militar. Boa forma de tentar entender, aliás, porque essa mesma elite —e não só a elite— parece disposta, 50 anos mais tarde, a mergulhar novamente na barbárie.

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Adams Carvalho

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