Folha de S.Paulo

Pesquisado­res enfrentam via-crúcis para estudar maconha no Brasil

Acusadas por ministro de abrigar plantações extensivas, universida­des têm acesso escasso à Cannabis

- Natália Cancian e Danielle Brant

brasília As declaraçõe­s do ministro da Educação, Abraham Weintraub, de que universida­des federais abrigariam extensivas plantações de maconha contrastam com as dificuldad­es enfrentada­s por pesquisado­res que tentam estudar a Cannabis.

“Senhor ministro, se as universida­des federais tivessem ‘extensivos cultivos’ de cannabis a saúde pública estaria em melhores condições”, escreveu em rede social Virgínia Carvalho, coordenado­ra do projeto Farmacanna­bis, que analisa extratos à base de canabidiol na UFRJ (Universida­de Federal do Rio de Janeiro).

Além do preconceit­o com o tema, a necessidad­e de obter autorizaçõ­es da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e de instituiçõ­es de ensino, o custo dos insumos e as dificuldad­es para financiar as pesquisas são apontados como entraves.

“É uma série de instâncias que acaba fazendo com que a pesquisa com Cannabis fique impraticáv­el. Já vi pesquisado­res que foram estudar álcool ou nicotina porque não conseguira­m pesquisar algo que, na prática, está em toda esquina”, diz Renato Filev, pesquisado­r da Unifesp (Universida­de Federal de São Paulo).

O acesso à planta é, hoje, um dos principais obstáculos.

A legislação brasileira permite que a União autorize o cultivo de Cannabis para fins de pesquisa e uso medicinal, mas não há uma regulament­ação sobre o tema. Na prática, nenhuma instituiçã­o do país tem aval para isso, de acordo com a Anvisa.

O número de novas autorizaçõ­es especiais de pesquisa também é baixo. Dados da agência mostram que, desde 2010, foram apenas 22 novas autorizaçõ­es desse modelo —a Anvisa não informa quantas foram para universida­des.

Sem acesso, a maioria dos pesquisado­res precisa recorrer à importação ou solicitar à polícia plantas de apreensões —material que, embora ajude, nem sempre é rápido de ser obtido ou adequado à pesquisa final.

“Um padrão de referência certificad­o de canabinoid­e ácido que eu uso na minha metodologi­a, de 1 miligrama, custa R$ 7.000 para importar. É muito caro. É uma substância pura que usamos para fazer controle de qualidade ou perícia criminal. Mas não temos isso no Brasil”, diz Carvalho, que faz pesquisas na área forense, além de analisar e desenvolve­r extratos de Cannabis.

Há dois anos, ela iniciou um projeto para dar apoio a famílias que tinham aval judicial para cultivo em casa para uso medicinal. Atualmente, o grupo recebe a planta e produz extratos à base de canabidiol. O projeto é acompanhad­o pelo Ministério Público Federal.

Segundo Virgínia, essa tem sido a única maneira de estudar a Cannabis —ainda assim, com limitações.

“Chegamos a receber um financiame­nto de um instituto privado, mas recebemos a resposta de que a atual situação político-regulatóri­a impediu que ele seguisse”, diz.

Ela se refere aos embates entre o governo e Anvisa na regulação do tema. Em julho, a agência sinalizou que autorizari­a o plantio de Cannabis no país por empresas para pesquisa e produção de medicament­os. A medida poderia incluir universida­des, caso se adequassem às normas exigidas.

Mas o debate travou após pedido de vista de dois diretores, e em meio a críticas do governo. A discussão deve ser retomada nesta terça-feira (3).

Para Filev, da Unifesp, a situação é de espera. Nos últimos dois anos, ele não conseguiu acesso ao insumo a tempo de cumprir o prazo de um edital de financiame­nto para a qual sua pesquisa de pós-doutorado havia sido selecionad­a.

Agora, estuda maneiras de terminar os estudos. Uma das alternativ­as em análise é entrar na Justiça para obter aval ao cultivo em conjunto com outros pesquisado­res que passam pelo mesmo tipo de entrave.

“Da mesma forma que existem habeas corpus hoje para resguardar famílias que plantam para fins terapêutic­os, a ideia é fazer a mesma coisa em nome da ciência”, diz ele, que cita casos em que pesquisado­res recorrem à compr ailegal para poder continuar os estudos.

Na UnB (Universida­de de Brasília), a coordenado­ra do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabil­idades Associadas, Andrea Gallassi, esperou três anos para ver sua pesquisa que visa testar o uso de canabidiol em usuários de crack poder sair do papel.

O motivo era a necessidad­e de obter autorizaçõ­es e recursos para financiar a importação de 200 frascos de canabidiol, ao custo de US$ 229 (R$ 971) cada um.

“O processo burocrátic­o é desanimado­r. Recebo dezena de emails de colegas de universida­des querendo saber como eu consegui”, diz.

Sem recursos do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvi­mento Científico e Tecnológic­o), a pesquisado­ra recorreu à Fap-DF (Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal). Mas o valor ficou aquém do necessário.

A saída foi via emenda parlamenta­r. No ano passado, ela conseguiu o dinheiro com a ajuda do ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ).

“Foi difícil encontrar apoio para ajudar. É uma substância proibida, há preconceit­o e informação equivocada sobre o assunto”, afirma.

Ajudar a destravar as pesquisas é um dos objetivos de um projeto da UFSJ (Universida­de Federal de São João Del-Rei).

Em 2017, depois de dois anos reunindo documentos, a universida­de foi uma das primeiras a obter autorizaçã­o da Anvisa para cultivo —mas in vitro, e só com partes da planta.

Na prática, em vez de uma plantação, o que se vê são potinhos enfileirad­os usados para produzir células e tecidos da Cannabis. O objetivo é, no futuro, produzir canabidiol em quantidade suficiente para que as universida­des não tenham que importar.

A produção ainda é limitada. “Falar em plantação é algo quase que inimagináv­el para nós. Diante da restrição que temos para produzir somente in vitro, imagina em larga escala?”, questiona a professora Vanessa Stein, uma das coordenado­ras do projeto.

Na UFMG (Universida­de Federal de Minas Gerais), o professor Fabrício Moreira até tentou obter recursos via CNPq, mas o conselho não abriu edital para o envio de projetos. A pesquisa de Moreira estuda como o canabidiol funciona contra a epilepsia.

“No meu laboratóri­o, a situação está complicada. Não fechamos as portas, mas o laboratóri­o que coordeno e vários outros se perguntam até que ponto vamos conseguir continuar.”

Sem dinheiro público, uma alternativ­a seria recorrer a investidor­es privados. Mas, segundo Moreira, a retórica agressiva do governo afasta empresário­s.

Para Carvalho, da UFRJ, parte das dificuldad­es tem um ponto em comum: o preconceit­o. “E ele existe dentro da universida­de também. Alguns não gostam e desconfiam do que você está fazendo. Outros acham que você é maconheiro”, diz ela.

 ?? Adriano Vizoni - 25.set/Folhapress ?? Cientista da empresa Entourage Phytolab que, em parceria com a Unicamp, desenvolve extrato concentrad­o de canabidiol
Adriano Vizoni - 25.set/Folhapress Cientista da empresa Entourage Phytolab que, em parceria com a Unicamp, desenvolve extrato concentrad­o de canabidiol
 ?? Divulgação ?? Cultivo in vitro de Cannabis na Universida­de Federal de São João del-Rei
Divulgação Cultivo in vitro de Cannabis na Universida­de Federal de São João del-Rei

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil