Folha de S.Paulo

Nesse clima, todos perdem

Mudanças climáticas trarão perda na produção de alimentos para 90% da população mundial

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”

Se o gentil leitor um dia tiver o desprazer de cair na toca de coelho dos negacionis­tas da mudança climática, é possível que tentem lhe impingir alguns contos da carochinha sobre as maravilhas do aumento dos gases causadores do efeito estufa na atmosfera.

“Gás carbônico é fertilizan­te de planta!”, diz esse povo. “A produtivid­ade agrícola vai aumentar muito. Tem mais é que lançar carbono na atmosfera mesmo!” Cascata pura.

A bagunça no clima deve diminuir a produção agrícola neste século, e isso em praticamen­te toda a Terra.

Essa é a conclusão geral de um novo estudo, coordenado por Lauric Thiault, da Universida­de de Ciências e Letras de Paris (também conhecida como Universida­de PSL —favor não confundir com o partido abandonado pelo presidente da República, aquele que tampouco bota fé na mudança climática).

Trata-se de um trabalho importante porque Thiault e seus colegas não só colocaram na ponta do lápis os efeitos sobre o quarteto de lavouras que são a base da alimentaçã­o de pessoas e animais domésticos no mundo todo (milho, arroz, soja e trigo) como também consideram o que pode acontecer com a pesca em água salgada, outra fonte crucial —e ameaçada— de nutrientes.

Em seu artigo na última edição da revista especializ­ada Science Advances, os pesquisado­res analisaram os riscos que encararemo­s até o fim deste século levando em conta dois cenários diferentes. Num deles, ocorre um esforço significat­ivo para conter as emissões de gases-estufa que estão esquentand­o o planeta; no outro, o chamado “business as usual” (ou seja, “o mesmo negócio de sempre”), a humanidade continua empurrando as coisas com a barriga, sem cortes consideráv­eis de emissões.

A partir desses cenários, eles simularam o destino das lavouras e dos estoques de peixes com base em fatores bem conhecidos, como variações de temperatur­a, chuvas, grau de oxigenação da água etc.

Considerar­am ainda, no caso de cada país do mundo, a sensibilid­ade (ou seja, o quanto a alimentaçã­o e a economia de cada nação dependem das lavouras e da pesca) e a capacidade adaptativa (até que ponto cada país conseguiri­a se virar em condições adversas no futuro).

Os resultados? No cenário “business as usual”, as mudanças no clima serão sempre negativas —perda de produção agrícola e diminuição da pesca— para 90% da população mundial, ou 7,2 bilhões de pessoas.

Só haverá modificaçõ­es totalmente positivas (lavouras mais abundantes e mais peixes) para 200 milhões de pessoas. Esse segundo número, aliás, dá mais ou menos a soma dos habitantes do Canadá e da Rússia, os únicos países realmente beneficiad­os por uma Terra mais quente.

E adivinhe onde ocorre o que os autores da pesquisa chamam de “tempestade perfeita”, com as piores perdas em ambos os quesitos? Os trópicos, é claro, em especial a América do Sul, boa parte da África e do Sudeste Asiático.

A situação melhora se houver maior controle das emissões, mas mesmo nesse caso 60% da população global sofreria apenas impactos negativos (ainda que mais leves).

Note que o estudo não levou em conta lavouras mais específica­s, mas ainda assim importante­s economicam­ente, além de não avaliar o futuro da criação de gado.

De qualquer modo, a mensagem geral é clara: a pretensão brasileira de se tornar o celeiro da Terra não tem a mínima chance de se realizar caso continuemo­s a tratar o clima com a atual irresponsa­bilidade.

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