Nesse clima, todos perdem
Mudanças climáticas trarão perda na produção de alimentos para 90% da população mundial
Se o gentil leitor um dia tiver o desprazer de cair na toca de coelho dos negacionistas da mudança climática, é possível que tentem lhe impingir alguns contos da carochinha sobre as maravilhas do aumento dos gases causadores do efeito estufa na atmosfera.
“Gás carbônico é fertilizante de planta!”, diz esse povo. “A produtividade agrícola vai aumentar muito. Tem mais é que lançar carbono na atmosfera mesmo!” Cascata pura.
A bagunça no clima deve diminuir a produção agrícola neste século, e isso em praticamente toda a Terra.
Essa é a conclusão geral de um novo estudo, coordenado por Lauric Thiault, da Universidade de Ciências e Letras de Paris (também conhecida como Universidade PSL —favor não confundir com o partido abandonado pelo presidente da República, aquele que tampouco bota fé na mudança climática).
Trata-se de um trabalho importante porque Thiault e seus colegas não só colocaram na ponta do lápis os efeitos sobre o quarteto de lavouras que são a base da alimentação de pessoas e animais domésticos no mundo todo (milho, arroz, soja e trigo) como também consideram o que pode acontecer com a pesca em água salgada, outra fonte crucial —e ameaçada— de nutrientes.
Em seu artigo na última edição da revista especializada Science Advances, os pesquisadores analisaram os riscos que encararemos até o fim deste século levando em conta dois cenários diferentes. Num deles, ocorre um esforço significativo para conter as emissões de gases-estufa que estão esquentando o planeta; no outro, o chamado “business as usual” (ou seja, “o mesmo negócio de sempre”), a humanidade continua empurrando as coisas com a barriga, sem cortes consideráveis de emissões.
A partir desses cenários, eles simularam o destino das lavouras e dos estoques de peixes com base em fatores bem conhecidos, como variações de temperatura, chuvas, grau de oxigenação da água etc.
Consideraram ainda, no caso de cada país do mundo, a sensibilidade (ou seja, o quanto a alimentação e a economia de cada nação dependem das lavouras e da pesca) e a capacidade adaptativa (até que ponto cada país conseguiria se virar em condições adversas no futuro).
Os resultados? No cenário “business as usual”, as mudanças no clima serão sempre negativas —perda de produção agrícola e diminuição da pesca— para 90% da população mundial, ou 7,2 bilhões de pessoas.
Só haverá modificações totalmente positivas (lavouras mais abundantes e mais peixes) para 200 milhões de pessoas. Esse segundo número, aliás, dá mais ou menos a soma dos habitantes do Canadá e da Rússia, os únicos países realmente beneficiados por uma Terra mais quente.
E adivinhe onde ocorre o que os autores da pesquisa chamam de “tempestade perfeita”, com as piores perdas em ambos os quesitos? Os trópicos, é claro, em especial a América do Sul, boa parte da África e do Sudeste Asiático.
A situação melhora se houver maior controle das emissões, mas mesmo nesse caso 60% da população global sofreria apenas impactos negativos (ainda que mais leves).
Note que o estudo não levou em conta lavouras mais específicas, mas ainda assim importantes economicamente, além de não avaliar o futuro da criação de gado.
De qualquer modo, a mensagem geral é clara: a pretensão brasileira de se tornar o celeiro da Terra não tem a mínima chance de se realizar caso continuemos a tratar o clima com a atual irresponsabilidade.