Folha de S.Paulo

Brasil encolhe quando visto do hiperdesen­volvido

País observado de fora é pequeno, pobre e submisso à exploração imperialis­ta das nações pobres que habitam o eixo-sul

- Marilene Felinto Escritora e tradutora, escreve na Folha duas vezes ao mês. marilenefe­linto.com.br

A língua, o português, soava mais parecida com inglês do que com espanhol naquele evento de Houston, Texas, cidade de acentuada presença chicana, a que também chamam de tex-mex, misto de texano com mexicano —afinal o México fica logo ali, abaixo, assombrado pela esmagadora presença dos Estados Unidos. Afinal, o Texas foi antes território mexicano, incorporad­o pelos americanos no século 19. Afinal, fala-se espanhol em qualquer lugar em Houston.

Como eu não poderia ler em espanhol no evento —como fariam todos os demais convidados de um festival de literatura latino-americana—, me pediram que lesse em inglês. Além de meus textos estarem traduzidos para o inglês, mas não para o espanhol, não domino a língua espanhola como domino a inglesa.

Portanto, sozinha, isolada como o Brasil dentro do mapa da América do Sul (cercado de falantes de espanhol por todos os lados), encarei minha insignific­ância linguístic­a, para não falar da minha minoritári­a presença negra no tal festival. Apesar de tudo, é melhor ser negro nos Estados Unidos do que no Brasil.

Falei no evento, com um quase nó na garganta: quero antes dizer que não represento aqui o Brasil do grupo neofascist­a que tomou o poder no país via golpe jurídico-político. Não represento os governos que dão licença para a polícia matar meninas e meninos negros, a caminho da escola, nas favelas do Rio de Janeiro, nas periferias de qualquer cidade brasileira. Não represento a política de criminaliz­ação da miséria, do genocídio da juventude negra, do encarceram­ento massivo de mulheres e homens pobres.

Mas, ressalve, essa fala não significav­a que o Texas merece qualquer lugar melhor do que o brasileiro no quesito violência: mata-se ali muito, com a diferença de que não se trata de matança disfarçada de “segurança pública” como no Brasil. As causas são outras, ainda que o controle social de negros e outras etnias indesejada­s pela hegemonia branca seja o punitivism­o criminal igualzinho ao nosso.

Em agosto último, um psicopata desses americanos, armado com um fuzil AK-47, matou 22 pessoas dentro de um supermerca­do em El Paso, município texano na fronteira com o México. O branco xenofóbico saiu de casa à caça de mexicanos. Poucos dias depois, novas leis afrouxando o porte e uso de armas no Texas entraram em vigor. Agora é permitido ter e usar armas não apenas em residência­s privadas, mas também em escolas e igrejas.

Houston, a cidade da ostentação rica e branca, é armada até os dentes. As indústrias petrolífer­a e aeroespaci­al dão o tom do superdesen­volvimento do lugar. Gasolina barata e automóveis gigantes, potentes e de luxo completam o cenário de uma metrópole feita para carros, cortada por autoestrad­as, vias expressas (as chamadas “freeways”) de cinco ou seis pistas de asfalto perfeito, que se abrem para fora do centro, ligando este, por meio de anéis viários, a qualquer ponto do território absolutame­nte plano.

Entrar em um Uber de Houston é quase como experiment­ar um passeio de limusine, tal o tamanho e conforto desse transporte de passageiro­s por lá. Uma pesquisa de 2016 demostrou que, naquela cidade totalmente dependente do automóvel, quase 80% da população vai ao trabalho dirigindo sozinha seu próprio carro, o qual comportari­a mais quatro ou até seis, sete pessoas. A mesma pesquisa indicou que somente 3,6% de seus habitantes utilizam transporte público.

Não bastasse isso, é Houston que abriga a sede das instalaçõe­s do Centro Espacial da Nasa, o centro de controle das missões espaciais. A cidade também é conhecida pela tecnologia de ponta em medicina —ali está instalado o Texas Medical Center, maior aglomerado de instituiçõ­es médicas e de pesquisa em saúde do mundo, com seus avançados centros de tratamento de câncer e experiment­os em DNA.

Aquela espécie de shopping center da saúde, um agrupament­o de prédios ultramoder­nos (objeto de propaganda em outdoors e veículos de mídia como se fosse um produto qualquer de consumo), aquela cidade asséptica existe provavelme­nte como contrapont­o ao tanto de fast food que os americanos comem no norte, em Nova York, também por exemplo. É como se o conglomera­do da saúde viesse compensara quantidade de doença elixo ques e produz no resto do país.

Entrar hoje num restaurant­e ou lanchonete qualquer para um almoço rápido em Nova York implica invariavel­mente comer num prato de isopor ou numa tigela de papelão ou plástico, com talheres e copos também de plástico. A obesidade de grande parte da população, negra ou branca, salta aos olhos. Ainda que Nova York tenha um eficientís­simo sistema de reciclagem e compostage­m de lixo doméstico, recolhido na porta das moradias, o montante de resíduos produzidos impression­a.

Mas, amim, interessar­am os carros. Não se veem pelas ruas de Houston os coitados dos Unos, Gols, Corsas, os Renault não-sei-quê que essas fábricas europeias despejam nas ruas do Brasil como se fossem produtos de primeira linha —sem dispositiv­os de segurança eficientes, sem o conforto (para não falar do luxo) dos automóveis­dos EUA. É nis soques e nota como obras ileiroécon siderado cidadão de segunda classe —o mundo rico sabe que brasileiro não tem dinheiro para adquirir esse tipo de bem; sabe que só cabem aqui arremedos de automóveis.

Eu, que tenho um defeito de formação, o de adorar carros, senti um minuto de inveja daquela pujança alarmante da cidade texana. Claro que a ultrarriqu­eza americana de Houston se dá às expensas do Brasil, às custas da Venezuela, na exploração imperialis­ta do Equador, da Guatemala ou de qualquer outro país pobre do chamado eixo sul.

A inveja dos automóveis passou logo. Tive pena da classe média brasileira que comemora, como se estivesse subindo de vida, ao passar do automóvel 1.0 para o carro 1.6 —classe média desinforma­da, despolitiz­ada, que não conhece o lugar que lhe reserva o mundo rico. E tive vergonha da classe alta estilo Miami, da mesquinha e abrutalhad­a burguesia de direita, dos grupelhos que apostam na violência e na destruição do mais fraco como forma de governar.

O Brasil visto de fora, do mundo hiperdesen­volvido, encolhe, é pequeno, pobre, submisso. Esta foi a segunda vez que andei lá fora de cabeça baixa, constrangi­da da situação política e social do país, tendo que explicar a profunda crise de legitimida­de por que passam as instituiçõ­es democrátic­as no Brasil. A primeira foi nos anos Collor, quando, coincident­emente, morei em Berkeley, na Califórnia.

Também envergonha­da de que, em um dado momento, a poesia, a literatura, tenha me importado menos, ali em Houston, do que um hiperautom­óvel, uma supermáqui­na ianque, terminei a fala com um nó inteiro na garganta.

“Mas, a mim, interessar­am os carros. Não se veem pelas ruas de Houston os coitados dos Unos, Gols, Corsas, os Renault não-sei-quê que essas fábricas europeias despejam nas ruas do Brasil como se fossem produtos de primeira linha — sem dispositiv­os de segurança eficientes, sem o conforto (para não falar do luxo) dos automóveis dos EUA

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