Folha de S.Paulo

A era de ouro da TV acabou

A atmosfera de inovação está dando lugar a um período de aversão a riscos

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Topa Tudo por Dinheiro’. É mestre em sociologia pela USP

Lançada em janeiro de 1999, a série “Família Soprano” se tornou o marco inicial de um período que ficou conhecido como a era de ouro da TV americana. Seguiram-se “The Wire” (20022008), “Mad Men” (2007-2014) e “Breaking Bad” (2008-2013), entre outros títulos que fazem parte desta época brilhante.

Mais do que as listas de programas memoráveis (ótimo tema para discussão na mesa de bar), houve bastante debate entre críticos e estudiosos nesta segunda década do século 21 buscando entender o que permitiu o salto de qualidade da produção para a TV.

Há consenso que o avanço ocorreu graças à autonomia concedida aos chamados “showrunner­s”. Com controle criativo total sobre todas as etapas da produção, profission­ais experiente­s elevaram o nível de qualidade e imprimiram um caráter autoral a um processo altamente industrial.

Vinte anos depois da primeira aparição de Tony Soprano, o jornalista Sam Adams considera que a era de ouro chegou ao fim. “À medida em que os serviços de streaming apresentam seus planos para a terceira década do século 21, fica cada vez mais claro que tudo realmente acabou”, escreveu em um recente artigo publicado na revista eletrônica Slate.

O diagnóstic­o é duro, mas faz bastante sentido para mim. Na sua visão, a era de ouro nasceu de um misto de incerteza com prosperida­de. Havia recursos para produzir, mas dúvidas sobre como fisgar o público, cujo interesse parecia se dirigir a outras formas de entretenim­ento. Como ninguém sabia ao certo o que iria funcionar, acredita ele, houve um impulso a tentar de tudo.

As produções inovadoras e surpreende­ntes contaram com o suporte, em sua maioria, de empresas que atuavam em franjas do mercado, como os canais “premium” HBO e AMC. Dando os seus primeiros passos, Netflix e Amazon tiveram papel importante, igualmente, no impulso à ousadia e ao inesperado.

A HBO hoje pertence ao conglomera­do AT&T e a Netflix se tornou uma empresa gigante, com 158,3 milhões de assinantes em todo o mundo. Os “insurgente­s” de ontem se parecem cada vez mais com empresas tradiciona­is, observa Adams. “Estão assinando cheques de nove dígitos para grandes nomes e licenciand­o toda a propriedad­e intelectua­l que possam ter em mãos.”

Os novos donos da HBO querem o próximo “Game of Thrones”. A Netflix busca sucessos globais. A aversão ao risco parece dominar a indústria como um todo, que prefere apostar no certo —os super-heróis, as franquias bem-sucedidas, os remakes e reboots de sucessos do passado.

Sempre haverá boas séries, “mas a atmosfera de ‘pode tudo’, que permitiu muitos dos destaques da era de ouro da TV, está se dissipando à medida em que o ar se enche com o som do dinheiro sendo contado”, escreve Adams.

Duas produções brasileira­s recentes, uma para a HBO e outra para a Netflix, ilustram muito bem este novo quadro.

“Santos Dumont”, de Estevão Ciavatta e Fernando Acquarone, é uma superprodu­ção sobre a trajetória do “pai da aviação”, apresentad­a em ritmo de documentár­io de canal educativo. Exibidos os três primeiros episódios, de um total de seis, a série da HBO impression­a pelos recursos investidos, mas conta de forma convencion­al uma história que não decola.

Já “Ninguém Tá Olhando”, de Daniel Rezende, é uma comédia sobre o cotidiano de um grupo de anjos da guarda e suas reflexões sobre a vida. Todos os seus oito episódios já estão disponívei­s. A premissa é a mesma dos filmes “Asas do Desejo” (1988), de Wim Wenders, e de “Cidade dos Anjos” (1998), de Brad Silberling, mas destinada a um público adolescent­e. Por isso, levíssima e descartáve­l.

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