Folha de S.Paulo

Piada de luso-brasileiro

Dentro de cada brasileiro há um português, e vice-versa

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’

Há uma história de Ray Bradbury em que um homem tem pavor de esqueletos. Acontece que, um dia, contemplan­do as próprias mãos, ele começa a constatar o óbvio: dentro dele existe um esqueleto. Ele contém o que mais abomina e teme.

Começo a perguntar-me se as piadas de português, no Brasil, não dariam uma boa história de Ray Bradbury.

Sabe aquela do português

que chegou ao país do futebol e em menos de seis meses ganhou o campeonato brasileiro e a Copa Libertador­es? Sabe aquela do português cuja equipa igualou um feito anteriorme­nte alcançado apenas pelo Santos do Pelé?

Sabe aquela do português que foi designado cidadão honorário do Rio de Janeiro e, na cerimônia da homenagem, revelou que a sua avó era brasileira? Esta é a minha tese: dentro de cada brasileiro há um português, e vice-versa.

Ou seja, portuguese­s e brasileiro­s são mais ou menos iguais (desculpem se ofendo). Significa isto que as piadas de português que os brasileiro­s contam não são um sinal de suave xenofobia, são autodeprec­iação.

O sucesso de Jorge Jesus no Brasil também se deve a uma instituiçã­o luso-brasileira que o mundo moderno parece empenhado em fazer desaparece­r: a malandrage­m. Hoje, as coisas querem-se assépticas, oti- mizadas, retas, eficazes, alemãs.

Especialis­tas em empreended­orismo não aprovariam que Garrincha driblasse duas vezes o mesmo joão. Éum desperdíci­o de recursos. E também não é politicame­nte correto. O pobre joão, sem direito sequer aletra maiúscula no nome, humilhado duas vezes quando uma já seria demais.

E, no entanto, o futebol brasileiro era isso, e o de Jorge Jesus ainda é.

Uma vez, quando Jesus orientava o Benfica, pergunteil­he como é que ele preparava os jogos, consoante o adversário. Ele respondeu, com um entusiasmo infantil bastante engraçado numa pessoa de 60 anos, como se contasse um segredo perverso: “É preciso arrumar a melhor forma de os enganar”.

Uma pequena cápsula de malandrage­m: a ideia de que o adversário é um “eles” indefinido que a gente precisa enganar à força de esperteza. Nisso, Jorge Jesus é uma espécie de concentrad­o de português. Seria, aliás, mais apropriado ele chamar-se Manuel Joaquim Jesus. Jorge é só para disfarçar. Ou seja, é malandrage­m.

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Luiza Pannunzio

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