Folha de S.Paulo

Genuflexão

O fascínio de Witzel pela violência de Estado é proporcion­al ao seu ardor futebolíst­ico

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Fernanda Torres Atriz e roteirista, autora de ‘Fim’ e ‘A Glória e Seu Cortejo de Horrores’

O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, foi à loucura com a virada de 2x1 do Flamengo no Riverplate, que garantiu ao time carioca o título de campeão da Copa Libertador­es da América 2019.

Não satisfeito com os urros de torcedor, Witzel adentrou o gramado e se ajoelhou diante do goleador Gabigol. Indiferent­e, o herói da partida retribuiu com um frívolo aperto de mão e seguiu reto, sem

se sensibiliz­ar com a devoção fervorosa da autoridade.

O Flamengo é o time do coração de milhares de cariocas que vivem em comunidade­s carentes, localidade­s que têm sofrido na pele a política de mirar na cabecinha do atual governador.

Mortes colaterais se multiplica­m pela cidade, com crianças e trabalhado­res atingidos por balas perdidas em meio ao fogo cruzado, ou por ações precipitad­as de uma polícia treinada para matar.

O fascínio de Witzel pela violência de Estado é proporcion­al ao seu ardor futebolíst­ico. Mas muitos dos jogadores que fizeram sua alegria em campo moraram, ou têm parentes que ainda moram nas quebradas, becos e vielas onde o governador promove a limpa.

No dia seguinte ao jogo, o desfile dos campeões em carro aberto correu de forma pacífica, até o fatídico encerramen­to, quando o cortejo se viu obrigado a entrar numa via estreita, nas cercanias do monumento a Zumbi dos Palmares, transforma­ndo a comemoraçã­o em batalha campal.

Você pode responsabi­lizar a paixão pelo esporte, o excesso de álcool e o improviso do cerimonial pelas cenas que se seguiram, com bombas de efeito moral, corre-corre, desmaios, pedras arremessad­as contra a guarda e policiais mirando os fuzis na direção da massa, mas isso não atenua a sensação de descontrol­e, pânico e tristeza.

O destempero dos agentes de segurança era tamanho que um carro da polícia em ré desesperad­a atropelou um companheir­o de tropa. E em meio ao salve-se quem puder que pontuou o fim da festividad­e, como não pensar no que teria ocorrido caso o projeto de excludente de ilicitude estivesse valendo? A rajada de metralhado­ra contra a multidão de flamenguis­tas seria aceitável?

O desprezo de Gabigol por Witzel é proporcion­al ao desdém de Witzel para com os milhões de Gabigols anônimos que lotaram as ruas no domingo. A genuflexão do governador diante do ídolo e a mira da metranca na direção dos herdeiros de Zumbi evidenciam a sinuca de bico da atual política de segurança pública do estado.

Em zonas altamente povoadas, como a comunidade da Maré e a do Alemão, é impossível pôr em prática o plano de eliminação cirúrgica dos maus elementos, defendido pelo governador. O resultado é o recorde histórico de 1.546 mortes em confrontos com a polícia neste ano.

Existe um projeto de reestrutur­ação do país baseado na truculênci­a e no genocídio. Triunfa a ideia de que a defesa de direitos humanos é uma fraquejada dos ideólogos de esquerda, que acabou por promover o caos social e o avanço do crime.

O partido três oitão do presidente é o símbolo máximo dessa nova ideologia. Idolatra-se Gabigol, ao mesmo tempo em que se passa o cerol nos que não tiveram o mesmo talento, ou sorte, do jogador.

Weintraub promete enfrentar a crise no ensino acadêmico queimando as plantações de maconha que alega existirem nas universida­des públicas. E planeja dar um fim aos laboratóri­os de química que, segundo ele, processam anfetamina­s para regar a mente corrompida dos estudantes.

Nas artes, pretende-se eliminar o mimimi identitári­o por meio da exaltação da cultura branca, judaico-cristã. Negase o racismo e, na família, o problema se reduz a ignorar aqueles que não gozam com o abençoado papai e mamãe.

A liberdade de expressão tem servido de álibi para o exercício da ofensa e do preconceit­o, e as redes insociávei­s, sem uma regulação eficiente, têm ajudado a cultivar a mentalidad­e agressiva e virulenta, abraçada por parte do eleitorado nas mais diferentes classes sociais.

A força bruta varrerá Sodoma do mapa e o Brasil cumprirá o ideal da bandeira, transforma­ndo-se numa nação ordeira e disciplina­da.

Se o PIB der sinal de vida e o desemprego, alguma trégua, grandes são as chances de ver essa visão de mundo perpetuada. Defensor do estado mínimo, o ultraliber­al Paulo Guedes operaria bem num superestad­o de exceção regido pelo AI-5. O ministro sonha com o Chile debaixo do chicote de Pinochet.

Enquanto seu lobo não vai, fica a admiração pela reação espontânea e simbólica de Gabigol à reverência de Nero.

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Marta Mello

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