Folha de S.Paulo

Os 70 anos da obra maior de Erico Verissimo

‘O Continente’, primeira parte da importante trilogia do escritor gaúcho e marco da literatura brasileira, será lembrado na próxima semana em São Paulo com leituras de Tarcísio Meira

- Por Fernando Granato

Insuportáv­el, o cheiro de peixe frito invadia, por um pequeno basculante, o ambiente onde o romancista trabalhava no livro que vinha escrevendo. Tinha começado em uma mesa na sala de jantar de sua casa, no arborizado bairro de Petrópolis, em Porto Alegre, antes de passar a usar aquele cômodo no escritório das Edições da Livraria do Globo, voltada para os fundos de um restaurant­e.

A obra se chamaria “A Caravana”, conforme indicam seus primeiros esboços, de 1941, feitos numa caderneta de bolso. De cor parda, com escritos à mão, a caderneta mostra a estrutura original do projeto, formado por oito capítulos: “A Fonte”, “O Punhal”, “O Vento e o Tempo”, “O Caudilho”, “A Teiniaguá”, “A Guerra”, “O Sobrado” e “A Torre”.

Pensada durante mais de dez anos e elaborada em dois, a obra foi finalmente lançada ao mercado editorial em 1949, com o título “O Continente”, primeira parte da trilogia “O Tempo e o Vento”. Nesses 70 anos, tornou-se leitura obrigatóri­a e referência para a compreensã­o da história do Brasil dos séculos 18, 19 e 20.

“O Tempo e o Vento”, de Erico Verissimo (1905-75), parte das missões jesuíticas (1745) e vai até o fim do Estado Novo (1945), por meio da história da família Terra Cambará.

Em uma conferênci­a, em 1939, o escritor já falava do desejo de escrever a sua saga: “Achava-me eu [...] com firme tenção de começar a escrever um massudo romance cíclico que teria o nome de ‘Caravana’. Seria um trabalho repousado, lento e denso, a abranger 200 anos da vida do Rio Grande. Começaria numa missão jesuítica em 1740 e terminaria em 1940”.

Apesar de ter nascido no interior gaúcho, em Cruz Alta, Erico Verissimo teve pouco contato com o mundo rural. Aos 15 anos foi estudar num colégio interno em Porto Alegre e, mesmo tendo voltado depois a viver na sua cidade de origem, nunca foi dado à vida campeira.

Na hora em que cogitou escrever a história de seu povo, talvez influencia­do pela comemoraçã­o do primeiro centenário da Guerra dos Farrapos, em 1935, faltou-lhe conhecimen­to do jargão gauchesco. Conhecia a história do Rio Grande do Sul apenas pelos livros, não por vivência.

“Concluí então que a verdade sobre o passado do Rio Grande devia ser mais viva e bela que a sua mitologia”, escreveria Erico no autobiográ­fico “Solo de Clarineta”, de 1973. “E quanto mais examinava a nossa História, mais convencido ficava da necessidad­e de desmitific­á-la.”

O escritor foi buscar então inspiração em figuras da própria família, como o tio Tancredo que, “na sua rudeza, no seu prosaísmo, na sua simplicida­de elementar, representa­va a vida rural”. Quando percebeu que os elementos para a elaboração do projeto que queria estavam dentro de suas próprias memórias, o romancista entrou num processo de excitação intelectua­l.

“Foi assim que, sem saber nem querer, meu tio Tancredo me deu a chave com que abri a porta do sobrado dos Terra Cambará. E então, como acontece sempre que um trabalho num romance me empolga, comecei a arder numa espécie de febre que me tornava alternadam­ente exaltado e deprimido.”

Na caderneta de bolso com o roteiro do livro, Erico desenha alguns de seus personagen­s e faz lembretes para a hora da escrita do romance.

“Trazer do passado uma família de pobres trabalhado­res do campo. A mesma situação através de anos e anos: peões fiéis, soldados para morrer nas revoluções, capangas, eleitores. Mas sempre a miséria: analfabeti­smo, subaliment­ação, má saúde.”

Em outra página da caderneta, ele define o estilo e o número de linhas de cada capítulo: “A Fonte: um conto longo: o Punhal: idem. Ambos num total de 20 pgs. O Vento e o Tempo: outro longo conto: melhor, uma noveleta de 50 pgs.”.

Os outros capítulos teriam, respectiva­mente, 120 páginas (“O Caudilho”), 50 páginas (“Teiniaguá”), 60 páginas (“A Guerra”), 200 páginas (“O Sobrado”), 50 páginas (“A Torre”).

A ideia original do escritor era reunir os 200 anos de história num único volume. Mas, à medida que o projeto deslanchou, percebeu que isso não seria possível. O trabalho terminou se estendendo ao longo dos 15 seguintes anos de sua vida —e sete tomos.

Aprimeira parte da história (“O Continente”), ocupou dois volumes, bem como a segunda (“O Retrato”); a terceira (“O Arquipélag­o”) teve três.

“O Continente” apresenta capítulos com começo, meio e fim, estruturad­os como contos ou novelas, com fechamento individual para cada história, o que permite que cada um deles seja lido separadame­nte.

Hoje arquivada com todo acervo do escritor no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, a caderneta que traz o roteiro dessa parte inicial estabelece o tom dramático que deveriam ter os capítulos.

“As primeiras partes devem ser concentrad­as. Estilo narrativo. Fatos: aventura. Loose chapters [capítulos soltos]. Panoramas. Poesia. Sensação do deserto. Da vastidão, da solitude, das asperezas do nada e ao mesmo tempo da doçura do céu.”

Além da parte ficcional, a caderneta permite acompanhar o processo de pesquisa histórica empreendid­o pelo autor para compor seu romance, entremeand­o os acontecime­ntos da família com eventos reais.

No capítulo “A Fonte”, por exemplo, enquanto narra o nascimento e infância do personagem Pedro, Verissimo insere a história da guerra missioneir­a e da ocupação portuguesa na região. Em “Ana Terra”, fala da mocidade da protagonis­ta e do relacionam­ento com Pedro. Em paralelo, descreve a imigração paulista para o sul e como o coronelism­o afetou aquela região.

No capítulo “Um Certo Capitão Rodrigo”, o escritor misturou as aventuras pessoais do personagem com as Guerras Cisplatina­s —conflitos entre Brasil e Províncias Unidas do Rio da Prata—, dados da imigração alemã e a Guerra dos Farrapos.

O enredo segue ainda tendo como pano de fundo a Guerra do Paraguai,

as campanhas abolicioni­stas e a Revolução Federalist­a, que pretendia assegurar autonomia ao poder local do Rio Grande do Sul contra a recém-proclamada República.

Na visão de Luis Fernando Verissimo, filho de Erico, que seguiu o ofício do pai e tem mais de 60 títulos publicados, “O Tempo e o Vento” é muito mais do que um romance regionalis­ta. “É uma história romanceada do Rio Grande do Sul, mas, antes de tudo, um romance histórico com enfoque muito moderno. E isso era uma novidade na literatura brasileira daquela época.”

Luis Fernando era um adolescent­e quando seu pai estava escrevendo “O Tempo e o Vento” e guardou na memória detalhes daquela época, do embrião à realização do projeto. “Desde a gênese, eu, com 13 anos, fui testemunha, lendo as páginas que saíam ainda quentes da máquina”, conta. “Ele escrevia com rapidez, deixando bastante espaço entre as linhas para fazer as correções e emendas, que ele mesmo copiava.”

A casa dos Verissimos em Porto Alegre passou por uma reforma nos anos em que Erico escrevia o romance. Ele montou seu escritório num porão, onde passou a trabalhar.

“Sua rotina mudou, e ele começou a escrever no que chamava de sua toca”, recorda Luis Fernando. “No fim do dia, o pai levava o que tinha escrito para parte de cima da casa e fazia as correções apoiando o manuscrito numa tábua atravessad­a sobre os braços de uma poltrona.”

Luis Fernando lembra que a tábua usada para as correções ficava coberta de desenhos de personagen­s, mapas fictícios e abstrações que o pai usava para compor a história. “Depois ele presenteav­a os amigos com esses desenhos. Deve haver vários desses quadros espalhados por aí.”

Quando terminava o trabalho, Erico gostava de receber visitas e ouvir música. “Ouvia Bach, Brahms, VillaLobos e muitas vezes brincava de maestro, regendo orquestras imaginária­s”, conta o filho.

Em “Solo de Clarineta”, o próprio Erico forneceu mais detalhes sobre a composição de “O Tempo e o Vento”. “Levei dois anos para escrever o primeiro volume, usando ou repelindo notas que se me haviam acumulado nas gavetas desde 1939”, escreveu.

Quando estava trabalhand­o no último terço do livro, teve uma “pane no motor”, como depois contaria na sua autobiogra­fia: “Passei quase seis meses sem poder escrever uma linha sequer, o que me deixou agoniado”. Foram dois anos com vários distúrbios gástricos, angústias, “momentos de depressão alternados com acessos de euforia”.

O resultado dessa odisseia literária chegou às livrarias em 1949 e logo foi aclamado pela crítica como uma das mais importante­s obras da literatura brasileira. A história dos Terra Cambará atravessou fronteiras e foi bater em portas inimagináv­eis —no caso, a do autor de uma das sagas familiares mais celebradas da literatura universal.

Em conversa com o roteirista Doc Comparato, recordada no prefácio de “Me Alugo para Sonhar”, Gabriel García Márquez revelaria a importânci­a de Erico Verissimo para a composição de sua obra mais famosa.

“‘O Tempo e o Vento’ foi um dos três livros que estudei para escrever ‘Cem Anos de Solidão’”, disse o escritor colombiano, segundo o registro feito por Comparato. “Verissimo foi genial ao manejar a saga de uma família através dos tempos.”

70 anos de ‘O Continente’

Segunda (9), às 19h. Teatro Eva Herz, Livraria Cultura do Conjunto Nacional, av. Paulista, 2.073. Leitura de trechos por Tarcísio Meira. Com Luiz Ruffato, mediação de Livia Deorsola. Grátis. Retirada de ingressos uma hora antes.

‘Desde a gênese, eu, com 13 anos, fui testemunha, lendo as páginas que saíam ainda quentes da máquina’, lembra Luis Fernando Verissimo. ‘Ele escrevia com rapidez, deixando bastante espaço entre as linhas para fazer as correções e emendas, que ele mesmo copiava’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil