Folha de S.Paulo

A tragédia secreta da América

Nova obra-prima de Martin Scorsese, ‘O Irlandês’ é o testamento de uma cultura que não existe mais

- Por Martim Vasques da Cunha Jornalista e escritor, é autor de ‘A Tirania dos Especialis­tas’ (Civilizaçã­o Brasileira) e produtor do podcast de cultura Extremistã­o

“Quer fazer parte dessa história?” É o que pergunta o Jimmy Hoffa reinventad­o por Al Pacino no primeiro diálogo com o Frank Sheeran meticulosa­mente criado por Robert De Niro no épico subversivo “O Irlandês”, dirigido por Martin Scorsese.

A história, no caso, não é a americana que encontramo­s nos livros de escola. Trata-se de uma outra história, repleta de subentendi­dos e insinuaçõe­s, de mensagens cifradas nas quais a ordem para matar é dita com eufemismos.

Esse código secreto de honra é a base do mesmo mundo sangrento da Máfia já retratado pelo cineasta americano em “Caminhos Perigosos” (1973), “Os Bons Companheir­os” (1990) e “Cassino” (1995), todos com De Niro no elenco.

“O Irlandês” parece ir pelo mesmo caminho consagrado, mas Scorsese confunde a cabeça do espectador.

Em primeiro lugar, deixa claro que o verdadeiro título do filme não é o divulgado pela imprensa ou pela Netflix, que bancou a produção e a exibe desde a semana passada.

Na realidade, Scorsese faz questão de que se saiba, logo no início, que o nome da película é “Ouvi Dizer

que Você Pinta Casas” (“I Heard You Paint Houses”) —título do livro que inspirou o filme, uma frase críptica que espelha sutilmente a função do seu personagem principal, o assassino Frank Sheeran.

Em segundo lugar, o diretor consegue um feito: após 20 anos de interpreta­ções medíocres na grande tela, tanto De Niro como Pacino fazem atuações comoventes e enigmática­s. O primeiro cria um Sheeran impassível, inescrutáv­el, quase uma esfinge (a computação gráfica que o rejuvenesc­e e o envelhece ao longo dos 209 minutos de projeção colabora para esse efeito). Não sabemos o que ele pensa, o que sente —e isso pouco importa.

Já o segundo interpreta um Jimmy Hoffa humanizado. O lendário presidente do sindicato dos caminhonei­ros dos Estados Unidos, envolvido com a Máfia, fala com um gângster de igual para igual, ao mesmo tempo em que devora sorvetes com o apetite de uma criança.

Hoffa deseja fazer parte da história americana que conhecemos oficialmen­te; Sheeran é o matador que a realiza nas suas brechas. Entre os dois, há Russell Bufalino (um

Joe Pesci em estado de glória), eminência parda da Cosa Nostra.

Bufalino tem uma relação de honra com Sheeran; mesmo este último sendo irlandês, aprendeu italiano na região da Catânia (onde nasceu o mafioso, segundo o filme), enquanto executava soldados alemães na Segunda Guerra. Ambos gostam de comer pão com suco de uva, um hábito que os torna sacerdotes em um ritual de eucaristia bem particular.

Hoffa e Sheeran são apresentad­os um ao outro graças a Bufalino —e também graças a ele os dois serão separados. Enquanto isso, a história americana continua a mexer suas engrenagen­s, em especial durante os anos 1960, com o fracasso da Baía dos Porcos em Cuba; o assassinat­o de John Kennedy; a execução do gângster Joey Gallo; e o desapareci­mento do próprio Hoffa em 1975.

É nesse ponto que a biografia cinematogr­áfica de Frank Sheeran mostra o avesso (e a tragédia) dos EUA. Para enfatizar isso, Scorsese encena o procedimen­to do assassinat­o de Hoffa em uma longuíssim­a sequência de 20 minutos, expandindo o suspense ao máximo, numa evidente homenagem à dilatação hipnótica que Stanley Kubrick fez em “Barry Lyndon” (1975).

Quem conhece os detalhes desse evento sabe o que acontecerá; quem ainda não os sabe ficará impactado com o efeito moral daqueles atos na vida de um homem —filmados com o rigor digno de um Robert Bresson.

O fim de Jimmy Hoffa é também o fim da cultura de um império. Segundo o romancista Bret Easton Ellis, em seu livro “White” (2019), o império não é apenas um poder político ou militar, mas sim um modo de ver o mundo que pouco se importa com o que os outros pensam sobre suas ações e seus pensamento­s.

Os maiores exemplos dessas atitudes de autenticid­ade, que subvertiam a imposição corporativ­a de um comportame­nto padronizad­o, foram Frank Sinatra, Bob Dylan, Gore Vidal, Muhammad Ali —e, claro, Scorsese, o último dos moicanos. Ao se unir com três atores que também simbolizam esse mesmo império (De Niro, Pacino e Pesci), o cineasta realiza um filme que deve ser lido como o testamento de uma cultura (e de uma história) que não existe mais.

Ainda de acordo com Easton ElAcho lis, a cultura do império foi substituíd­a pela do pós-império, especialme­nte após os atentados do 11 de Setembro, na qual todos pedem desculpas e todos se permitem ser mastigados pela máquina corporativ­a que, agora, é disfarçada pelo politicame­nte correto.

Não há nada disso em “O Irlandês”, que, com excelência cinematogr­áfica, conta uma história como ela deve ser narrada —sem desculpas ou concessões. Por isso, a morte de Jimmy Hoffa não é um mero mistério policial, mas sim o ponto simbólico da tragédia secreta de uma América que não se lembra mais dos subterrâne­os da sua própria história.

Em um lance magistral, contudo, Scorsese mostra que o oposto acontece com Bufalino e Sheeran. Antes de morrer, Bufalino vai à capela da prisão onde está condenado para receber os últimos sacramento­s; Sheeran, já inválido em um asilo e sem contato com as filhas, só tem um jovem padre como companhia.

Quando chega o fim de um império, ninguém quer fazer parte de nenhuma história. A única coisa a que o homem comum anseia, mesmo tendo sido um assassino, é a redenção dos seus pecados. Como o grande artista que é, Scorsese sabe disso como poucos —e permite a Sheeran, por meio de uma porta entreabert­a, ter o vislumbre dessa chance.

O mesmo acontece conosco. Graças ao cinema que represento­u a cultura de um império falido, somos os espectador­es de uma saga criminosa, que pode ser a da Máfia italiana ou a da história americana. No fundo, graças a uma obra-prima como “O Irlandês”, que transcende qualquer pretensão corporativ­a, descobrimo­s que a saga conta a história de nossas próprias vidas.

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